Enem do servidor federal vai oferecer em 2024 mais de 7 mil vagas

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A partir de 2024 haverá uma prova nacional unificando o processo de seleção de servidores federais, um Enem dos Concursos”, como o objetivo de facilitar o acesso da população às provas, inclusive em cidades do interior. A primeira prova será realizada no dia 24 de fevereiro.  A estimativa de vagas é de mais 7 mil no primeiro ano do concurso, Provas serão simultaneamente em 179 cidades das 5 regiões Cada ministério poderá decidir se vai aderir a esse modelo ou fazer os concursos por conta própria. O exame acontecerá ao mesmo tempo em 179 municípios, sendo 39 na Região Norte, 50 no Nordeste, 18 no Centro-Oeste, 49 no Sudeste e 23 no Sul. Haverá duas provas no mesmo dia. Uma com questões objetivas, comum a todos, e outra com perguntas específicas e dissertativas, divididas por blocos temáticos. Os candidatos para Trabalho e Previdência farão a mesma segunda prova, por exemplo; já os candidatos para Administração e Finanças Públicas, outra. As vagas abrangem os seguintes setores: Administr

Há 40 anos, militares assassinavam a liberdade

Carlos Marchi, do Estado de S. Paulo
ditadura-militar
Há 40 anos, na tarde/noite da sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, sentados à mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras, sede da Presidência da República no Rio, 25 membros do Conselho de Segurança Nacional - 15 militares e 10 civis - aprovaram o Ato Institucional nº 5 (AI-5), numa reunião que durou 2 horas e 10 minutos. O ato foi sugerido pelo próprio marechal-presidente Artur da Costa e Silva, sentado à cabeceira, e serviria para legalizar o arbítrio. Só um daqueles 25 homens votou contra, o vice-presidente Pedro Aleixo, embora estivessem na sala outros brasileiros de reconhecida tradição democrática.

Os atos institucionais vinham desde o começo do regime militar, em 1964. Eram leis que não passavam pelo Congresso. Os primeiros traziam um certo verniz de democracia, mas o AI-5 escancarou a ditadura. Nele, o marechal-presidente tinha poderes ilimitados. Podia legislar, cassar parlamentares e fechar o Congresso; suspender direitos políticos; mandar prender pessoas sem autorização judicial; nomear quem quisesse para governar Estados; censurar a imprensa para impedir a publicação de notícias que desagradassem ao governo, fosse uma crítica oposicionista ou um inesperado surto de meningite.

O Brasil daquela época tinha outra cara. Éramos mais de 90 milhões em ação estreitamente vigiada: só podíamos ouvir, ler, ver ou dizer o que o regime permitia. Os militares promoviam um culto exacerbado dos símbolos nacionais. A moeda se chamava cruzeiro novo, Pelé ainda jogava e nem tinha marcado o milésimo gol; as baladas eram chamadas de "bailinhos", banhados a luz negra, e as meninas compareciam com bem penteados cabelos longos. Não havia cerveja ou refrigerante em lata; os carros da moda eram Fusca, Gordini e Aero-Willys. O computador pessoal ainda estava em testes e a internet não passava de um embrião de restrito uso militar, nos Estados Unidos. Ainda bem, para os militares linha-dura que conceberam o AI-5: como teriam feito para censurar a rede mundial de computadores?

Inspirada por modelos revolucionários - de Cuba ao Vietnã -, a esquerda radical encantou os estudantes com a utopia da luta armada. Mas havia outros estímulos para o confronto. O mundo vivia o apogeu da guerra fria, que criou um planeta maniqueísta, dividido entre EUA, à direita, e União Soviética, à esquerda. Se um era o bem, o outro representava necessariamente o mal - e isso se reproduzia no Brasil.

Os estudantes também se empolgaram com o Maio de 1968, rebelião estudantil que começou reivindicando uma reforma universitária e acabou incendiando a França.
 
Nos primeiros meses de 1968, a escalada contra a ditadura chegou ao auge. Explodiu em março com a morte - num confronto com a polícia, no restaurante do Calabouço, no Rio - do secundarista Edson Luís de Lima Souto, cujo corpo foi transformado em ícone da luta política e mereceu um enterro-passeata com 50 mil pessoas. As ruas foram ocupadas nas principais capitais por sucessivas manifestações contra o regime, que perdia celeremente o apoio da classe média, conquistado no golpe contra o presidente constitucional João Goulart, quatro anos antes. Os dois extremos passaram a se retroalimentar - os estudantes protestavam, o regime endurecia.

Espremidas entre os extremos, a esquerda democrática e a direita liberal perdiam espaço, embora a Passeata dos 100 mil, em junho, tivesse revelado que a oposição ao regime era bem maior que a esquerda radical e os estudantes.

A linha dura militar buscava pretextos para fechar de vez o regime. O motivo ideal se revelou num discurso tão despretensioso quanto inconseqüente do deputado Márcio Moreira Alves (MDB da Guanabara), de 32 anos. Às vésperas do 7 de Setembro, ele apelou da tribuna da Câmara para que as moças não namorassem jovens oficiais. O governo militar quis processá-lo, mas a Câmara negou a licença. A resposta foi o AI-5.
 
O Ato nº 5 devastou a vida política e cultural brasileira. Com base nele, 1.577 cidadãos foram punidos - 454 perderam mandatos políticos ou tiveram os direitos políticos suspensos, inclusive 3 ministros do Supremo Tribunal Federal; 548 funcionários civis foram aposentados, 334, demitidos e 241 militares, reformados. As Assembléias dos Estados da Guanabara e do Rio, então separados, São Paulo, Pernambuco e Sergipe foram postas em recesso. Foram proibidos mais de 500 filmes e telenovelas, 450 peças teatrais, 200 livros e 500 letras de música; o Estado e a Tribuna da Imprensa, que não admitiram censura prévia, receberam censores nas oficinas.

O AI-5 foi extinto em dezembro de 1978. O regime não sobreviveu muito tempo sem ele. Seis anos e um mês depois, ensarilhou armas e devolveu o poder aos civis. Dezesseis anos mais tarde, um dos punidos pelo AI-5 - o exilado Fernando Henrique Cardoso, que em 1968 foi aposentado da Universidade de São Paulo e teve os direitos políticos suspensos por 10 anos - chegaria à Presidência da República. Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, amargara 31 dias de cadeia em 1979. Lula, por sua vez, poderá legar o poder a uma terceira vítima da ditadura. Os dois presidenciáveis mais destacados hoje são José Serra, presidente da UNE cassado em 1964, e Dilma Rousseff, militante da guerrilha, presa em 1970. Se um deles vencer, vítimas da ditadura terão ficado no poder 20 anos, exatamente o período que durou o regime criado pelo golpe de 1964.

Tínhamos de reagir'', diz Passarinho
Quando acabou a reunião que aprovou o AI-5, o ministro da Justiça, Luís Antonio da Gama e Silva, sentou-se numa mesa de carvalho, em outra sala, para, ao lado do locutor mais famoso do País, Alberto Curi, comunicar à Nação a triste novidade. Poderia ter simplificado sua fala, dizendo simplesmente: "A partir de hoje, nós, o governo militar, podemos fazer o que bem entendermos." Preferiu limitar-se a um breve intróito e deixar a leitura do édito dantesco para Curi, que, com fôlego, recitou os seis "considerandos" e os 12 artigos. Quando chegou ao fim, era noite fechada.
 
Dos 25 presentes à reunião, 24 (o presidente Artur da Costa e Silva, seus 18 ministros e os chefes do SNI e do Estado-Maior das Forças Armadas e das três forças) aprovaram o ato; apenas o vice-presidente Pedro Aleixo foi contra.

Quatro dos presentes, ainda vivos, explicaram seu voto a favor do AI-5. O ministro da Agricultura Ivo Arzua, um deles, lembra hoje que a reunião foi dominada por uma "máxima preocupação com os gravíssimos acontecimentos" da época. Arzua - que diz ter-se posicionado sempre "contra qualquer ditadura" - menciona "assaltos, depredações, incêndios".

Na gravação do encontro no Palácio das Laranjeiras (veja trechos na página ao lado), o então ministro da Fazenda, Delfim Netto, defendeu mais mudanças "para que o País possa realizar o seu desenvolvimento" e opinou, sem meias medidas, que o AI-5 era muito pouco. Procurado agora, disse que o relato de sua participação é verdadeiro e ele não tem nada a acrescentar.

ESCRÚPULOS DA HISTÓRIA
"Às favas com os escrúpulos da consciência", discursou na ocasião o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, ao declarar o seu voto. "Não era mais possível dar respostas com democracia", afirmou esta semana ao Estado, com convicção, Passarinho. "De acordo com a opinião dominante no CSN, não havia outra alternativa para conter o surto revolucionário extremista", reiterou Arzua.

Hoje, Passarinho se diz convencido de que a democracia passou a ser impraticável com 100 mil pessoas protestando na rua, numa referência à Passeata dos 100 mil, que deu gás à oposição. "Seria possível responder com democracia se a democracia fosse sólida", disse ele. A radicalização da esquerda, lembra Passarinho, levou as Forças Armadas a repensar a 2ª Seção, que antes estudava as possibilidades de guerra externa, em centro de estudos da guerra interna. Ali nasceria o embrião dos temíveis DOI-Codi, os órgãos encarregados da repressão.

"Quando eles começaram a atacar a área militar, nós tínhamos de reagir", desabafa Passarinho. Arzua conta que à época estudou Constituições democráticas de outros países. Daí concluiu que os textos mais avançados "excluíam dispositivos perecíveis", que, no caso brasileiro, provocaram o rápido envelhecimento da Constituição, reformada pelos próprios militares apenas ano antes.

"Tínhamos de evoluir para uma situação em que não poderíamos ter leniência", explica Passarinho. E prossegue: "Era fundamental, naquele momento, manter os dois pilares básicos que sustentam as Forças Armadas - disciplina e hierarquia, que estavam sendo minados." Ele lembra que, pouco antes do AI-5, enfrentou três greves com êxito. Numa delas, deflagrada pelos canavieiros de Pernambuco, contornada sem que fosse preciso efetuar uma só prisão, contou com a ajuda do bispo progressista d. Helder Câmara.

A esquerda radical alimentou a ditadura, com ações muito pouco heróicas, enganos trágicos bem explorados pelo regime militar. Em julho, o Comando de Libertação Nacional-Colina (no qual, à época, militava a então estudante Dilma Rousseff, hoje ministra-chefe do Gabinete Civil do governo Lula) executou, no bairro da Gávea, no Rio, o major alemão Edward Otto von Westernhagen, bisonhamente confundido com o então major boliviano Gary Prado - que menos de um ano antes prendera Ernesto Che Guevara, na Bolívia -, também aluno da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

Logo depois, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) executou o capitão americano Charles Chandler, para depois alardear que ele era da CIA. Nunca se provou que fosse. Em depoimento gravado que fez ao Estado, o militante Pedro Lobo de Oliveira, que dirigiu o Fusca bege do comando que fuzilou Chandler no bairro do Sumaré, São Paulo, se defendeu: "Quem descobriu que ele era da CIA foi o serviço de inteligência da VPR, infiltrado em todos os quartéis."

Até junho de 1968 havia esperança de que o regime militar respondesse às manifestações da esquerda com soluções democráticas. Logo após a Passeata dos 100 mil, Costa e Silva aceitou receber uma comissão da passeata para negociar. Sem usar paletós, integravam-na os líderes estudantis Franklin Martins (hoje ministro da Comunicação Social do governo Lula) e Marcos Medeiros.

Embora a passeata tivesse muito além do total de 10 mil universitários do Rio, a comissão apresentou só reivindicações estudantis. Na conversa, Medeiros chamou Costa e Silva de "professor" e a ironia foi mal recebida. Fechou-se a última porta. "Naquele momento, ter acenado com uma proposta de democracia teria tido enorme impacto, mas nós não fomos capazes", lamenta-se Jean Marc von der Weid, que assumiu a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1969.
 
Ainda havia, no contencioso da esquerda, contradições que não se resolviam. "A luta entre burguesia e proletariado não acaba com a extinção de um dos segmentos", observa ironicamente o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), ex-militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8). Só que a esquerda da época não era capaz de enxergar isso, diz.

O governo militar tinha gordura para queimar. A economia apresentava sinais animadores. Em 1968, o País cresceria 9,8%, bateria o recorde na produção de veículos e cimento e registraria o mais alto nível de emprego formal da história recente.

Mas a escalada política seria dramática: o jornalista Elio Gaspari escreveu que o ano registrou 85 denúncias de torturas, 21 assaltos a banco, 12 civis mortos em passeatas, 6 militares e 2 civis mortos pela nascente guerrilha e inúmeras depredações de teatros e atentados perpetrados pela direita terrorista. Daí para a frente, as coisas só iriam piorar.

O ATO DO ARBÍTRIO
Com o AI-5, o presidente podia:

1. Decretar recessos do Congresso, de Assembléias estaduais e de Câmaras de Vereadores sem maiores explicações e sem recurso à Justiça

2. Legislar sobre o que bem entendesse

3. Decretar a intervenção nos Estados e municípios, nomeando interventores

4. Cassar mandatos federais, estaduais e municipais, além de suspender direitos políticos de qualquer cidadão por 10 anos

5. Aplicar indiscriminadamente medidas de segurança tais como liberdade vigiada, proibição de freqüentar lugares, ter domicílio determinado

6. Suspender as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade de magistrados

7. Demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade empregados de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das Polícias Militares

8. Decretar estado de sítio, a seu próprio juízo

9. Decretar o confisco de bens dos que, supostamente, enriqueceram ilicitamente no exercício de cargo ou função pública

10. Manter suspensa a garantia de habeas-corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular
Trechos da reunião decisiva
"Disse perante homens do Congresso que era mais fácil para mim adotar medidas de prepotência e de força do que manter a continuidade do regime dentro da Constituição (...).Porque eu não creio que a área política tenha merecido de qualquer governo, de qualquer chefe de Estado, as considerações que eu tenho prestado a essa raça." (Artur da Costa e Silva, presidente da República)

"Da leitura que fiz do ato institucional cheguei à sincera conclusão de que o que menos se faz nele é resguardar a Constituição que no artigo primeiro se declara preservar (...)

Porque da Constituição, que antes de tudo é o instrumento de garantir os direitos da pessoa humana, de garantir os direitos políticos, não sobra nos artigos posteriores absolutamente nada que possa ser apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático (...)

Com o ato institucional estamos (...) instituindo um processo equivalente a uma ditadura." (Pedro Aleixo, vice-presidente da República)

"Acabamos de ouvir a palavra abalizada do vice-presidente. Eu discordo absolutamente dela. Estamos numa situação de fato. Nós não temos de debater juridicamente, ou legalmente, ou constitucionalmente, a questão (...)

O que se tem de fazer é uma repressão, acabar com estas situações que podem levar o País não a uma crise, mas a um caos de que não sairemos." (Augusto Rademaker, ministro da Marinha)


"Ouvi com grande e merecido respeito os conceitos de jurista (...) do dr. Pedro Aleixo. Mas devo declarar que, se ele tivesse diretamente a responsabilidade de manter essa Nação em ordem, ele não se ateria tanto aos textos respeitabilíssimos do Direito e das leis." (Aurélio Lyra Tavares, ministro do Exército)

"Creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas para criar as condições que permitissem a modificação de estruturas, que facilitasse (sic) o desenvolvimento econômico (...)

Creio que a revolução muito cedo meteu-se numa camisa-de-força que a impede de realizar esses objetivos (...)

Estou plenamente de acordo com a proposição (...). Se V. Exa. me permitir, direi mesmo que ela não é suficiente, que deveríamos (...) deveríamos dar ao presidente da República a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar seu desenvolvimento com maior rapidez." (Delfim Netto, ministro da Fazenda)


"Sr. presidente, sinto-me perfeitamente à vontade e, por que não dizer, com bastante satisfação em dar o meu aprovo. Demonstrei aos conselheiros, por fatos e por ações, que o que estava na rua era a contra-revolução. Acredito, sr. presidente, que, com sua formação democrática, foi V. Exa. tolerante por demais." (Emílio Garrastazu Médici, chefe do SNI)


"Meu ponto de vista é de sobejo conhecido de V. Exa. Concordo inteiramente e corroboro as palavras do sr. chefe do SNI. Se não tomarmos neste momento essa medida  que está sendo aventada, amanhã vamos apanhar na cara." (Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas)
O parto da mais longa das noites
Gabriel Manzano Filho
"Baixado o Ato-5, ?partiu-se para a ignorância?. Com o Congresso fechado, a imprensa controlada e a classe média de joelhos pelas travessuras de 1968, o regime bifurcou sua ação política. Um pedaço, predominante e visível, foi trabalhar a construção da ordem ditatorial. Outro, subterrâneo, foi destruir a esquerda."

Assim o jornalista Elio Gaspari resumiu, 34 anos depois, o plano de ação da ditadura tão logo o Ato nº 5 foi anunciado ao País. A frase abre um capítulo final de A Ditadura Envergonhada, primeiro dos quatro volumes em que ele disseca todo o período 1964-1977 - desde quando a farda derruba a ordem constituída (o presidente Goulart) até quando essa farda tira do jogo quem rejeitava a reconstrução dessa ordem (o ministro Sílvio Frota).

Para montar seu relato, Gaspari escreveu outras três "Ditaduras" - a Escancarada, a Humilhada e a Derrotada, sempre pela Cia. das Letras. Depois delas, os pesquisadores podem buscar outros temas. Um de seus feitos foi ter acesso à fita em que foi gravada a reunião do Conselho de Segurança Nacional, entre 5 da tarde e início da noite daquele 13 de dezembro.

Era, simplesmente, o parto dos anos de chumbo. O embrião do que se viu depois - o terror como fonte da lei - está todo naquelas 2 horas e 10 minutos. Nas certezas dos radicais que exibiam "a audácia de um pelotão de fuzilamento" e nas hesitações de um grupo mais brando, que não se dignou, no entanto, a sair da sala. Para quem se interessar, a gravação sobrevive intacta em dois CDs disponíveis no Instituto Moreira Salles, no Rio.

A vitória de Costa e Silva, naquela noite, era a senha para a "tigrada" sair do armário. Começava "uma longa noite, que duraria 10 anos e 18 dias".
As visões da história
Carlos Marchi
Esquerda e direita ainda disputam, 40 anos depois, a contabilização de seus erros e acertos em 1968. A direita se preocupa em maximizar o papel da esquerda radical na época e em minimizar a dose de arbítrio contida no AI-5. A esquerda procura fazer a autocrítica da luta armada, o seu maior engano histórico, que tinha deixado um desaconselhável exemplo na rebelião armada de 1935, conduzida pelo Partido Comunista Brasileiro.

O Estado ouviu dois signatários do AI-5, os então ministros do Trabalho, Jarbas Passarinho, e da Agricultura, Ivo Arzua; o líder estudantil Jean Marc von der Weid, que seria presidente da União Nacional dos Estudantes em 1969; o ex-dirigente do PCB Armênio Guedes; o historiador Jacob Gorender, autor de livros que desnudam a esquerda no período; o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), ex-militante do MR-8; o ex-militante da ALN e hoje chefe da Casa Civil do governo de São Paulo, Aloysio Nunes Ferreira; e a cientista política Maria Celina d?Araújo, da Fundação Getúlio Vargas. Nenhum defendeu a luta armada. Gorender justificou a intenção dos esquerdistas, embora tenha deixado claro que a considera um erro.

As principais revelações destes oito personagens estão aqui contidas e, em seu conjunto, formam um rico painel para explicar o País, a época, o papel do governo militar e as reações da esquerda.

Erro da esquerda foi isolamento da massa


O historiador Jacob Gorender, que produziu impactantes relatos sobre a luta da esquerda contra a ditadura militar, lembra que circulava em liberdade antes do AI-5, embora já estivesse vinculado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), fundado por dissidentes do PCB que queriam a luta armada. Quando o ato veio, ele não mergulhou na clandestinidade nem se exilou, como fez a maioria dos militantes da esquerda radical, nem andava armado. Apenas acrescentou alguma prudência a seus deslocamentos.

Hoje ele é um crítico da luta armada, embora tenha ressalvas amenizadoras. "O poder não viria pacificamente", diz. Reconhece que Che Guevara foi "precipitado e imprudente" ao abrir uma frente guerrilheira quando estava isolado, na Bolívia.

Isso acabou se repetindo aqui, admite: "A luta armada tinha de ser combinada com ações de massa." Ele critica as opções que restaram: "Ficamos isolados, sem condições de dar respostas adequadas às acusações que o regime militar, que nos chamava de terroristas, nos fazia."

Gorender diz que hoje está convencido de que foi errado insistir na guerrilha sem ter meios de falar com as massas que eram objeto da luta política. Mas ele tem uma visão generosa sobre os erros cometidos: "A esquerda errou, mas nós temos de compreender a situação em que os erros foram cometidos." Ao final, desabafa: "O que não poderão dizer é que nós fomos passivos."

Os dois lados não leram os sinais


Em outubro de 1968, quando 920 estudantes foram presos no congresso da UNE, em Ibiúna, a maior preocupação da polícia ao anunciar o seu feito foi dar mais destaque às pílulas anticoncepcionais apreendidas com as moças do que ao "material subversivo" encontrado, lembra o hoje deputado Fernando Gabeira (PV-RJ). O governo militar era, além de autoritário, conservador, diz ele, e isso se revelaria na censura depois do AI-5.

Esse, para Gabeira, foi o primeiro sinal da fronteira entre os comportamentos que muitos anos depois seriam uma grande referência de 1968. "Na época, a extrema direita e a esquerda radical ignoraram esses sinais porque eram igualmente conservadoras", afirma o ex-guerrilheiro do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR), que participou do mais importante seqüestro do regime militar, o do embaixador americano Charles Burke Elbrick.

Ele analisa que a luta armada pregada e sustentada pela esquerda radical trazia um leque de contradições que não se resolveriam até hoje: "A dicotomia entre burguesia e proletariado não tem de acabar com a extinção de um deles", ironiza.

Ele diz que o exílio lhe serviu para fazer observações e uma profunda avaliação crítica. Quando voltou ao Brasil, em 1979, trazia uma nova agenda, recolhida na Europa: a importância das mudanças comportamentais, o apreço pelas liberdades individuais e pela democracia e uma atenção para os problemas do meio ambiente.

Comunismo dirigia de fora atos de terror


O ministro da Agricultura do governo Costa e Silva, Ivo Arzua, continua hoje a ter convicção do voto que proferiu no dia 13 de dezembro de 1968, aprovando o AI-5: "Os relatórios da segurança, na época, comprovavam que atos terroristas eram praticados no Brasil seguindo orientação de organizações comunistas no exterior", explica, numa afirmação alinhavada pelo linguajar ideológico da época. Essas, segundo ele - que se diz "um autêntico cristão" -, eram as preocupações dos ministros que aprovaram o AI-5.

Arzua explica que, na reunião, o general-presidente Costa e Silva distribuiu cópias do projeto do AI-5 aos membros do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e pediu que cada um se manifestasse. Ele desmente que tenha levado um texto escrito à reunião, e explica que realmente se serviu de anotações, mas que elas foram sendo feitas à medida que a reunião transcorria e seus colegas de CSN se pronunciavam.

O ex-ministro diz discordar do então ministro da Fazenda, Delfim Netto, que desmistificou o objetivo de punir o deputado Márcio Moreira Alves, dizendo que tudo fora uma encenação para impor o AI-5.
"Discordo das afirmações do ministro Delfim." Ele afirma não ter tido mais nenhuma participação política desde que saiu do governo, e revelou que Costa e Silva era formal no trato com os ministros: cordial, mas chamava todos de "senhor ministro" e pedia sempre "por favor".

Diferença que pode separar vida e morte


"Tínhamos direito de recorrer à força para derrubar o regime", defende o chefe do Gabinete Civil do governo paulista, Aloysio Nunes Ferreira, à época militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas ele reconhece o equívoco que a opção pela luta armada representou: "A gente não sabia, mas o Brasil não estava à espera de jovens com armas na mão para libertá-lo."

Até 1968 Aloysio era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas naquele ano ele se tornou dissidente e derivou para a ALN e para a luta armada. Menos de dois anos depois, já no exílio, retornaria ao PCB. "Eu fui influenciado pela idéia da revolução, como milhares de jovens do meu tempo", explica. Quando voltou ao Brasil, depois de passar anos exilado na França, engajou-se, como a imensa maioria dos militantes do PCB, no MDB e na luta democrática.

Ele diz que os desencontros da luta armada serviram para ensinar-lhe lições. "A esquerda que se armou aprendeu com o tempo", reconhece. Mas o aprendizado maior, ensinado pelas perseguições da ditadura, que apelava para o arbítrio e ignorava a importância da Justiça e da imprensa livre, foi o que ele chama de liberdades formais, que à época eram solenemente ironizadas pelas "vanguardas revolucionárias". Aloysio diz: "Passamos a dar valor a liberdades formais, como o habeas corpus. Em muitos casos, elas, que nós tanto esnobamos, foram a diferença entre a vida e a morte."

É proibido discordar, idealizavam militares


O anticomunismo que estava na raiz da radicalização militar em 1968 se caracterizava por um medo que era racionalizado pelo viés autoritário, explica a cientista política Maria Celina d?Araújo, do Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc). "Aquele foi um momento intensamente totalitário. Os militares achavam que o País deveria se organizar sem espaço para a discordância", opina Celina, que entrevistou alguns expoentes da linha-dura que bancaram o AI-5.

Eles eram movidos pelos dois pilares da vida militar - a disciplina e a hierarquia. Eram guiados por um conjunto de valores cristãos e capitalistas, cita Celina, entre os quais os mais acesos eram a intocabilidade da propriedade privada e a moralidade das pessoas. E não aceitavam discordâncias em torno disso. O comunismo da esquerda também era autoritário e tinha matizes de conservadorismo moral, mas se justificava por se basear em princípios da igualdade, que era considerada superior à liberdade de mercado.

Nenhum dos dois lados litigantes em 1968, afirma Celina, defendia a democracia. Os militares queriam fechar o regime para encobrir o arbítrio da perseguição política; a esquerda marxista queria fazer a revolução para criar um regime comunista fechado. "Os dois projetos eram antidemocráticos", observa Celina, lembrando que a democracia acabou sendo a maior vítima dos enfrentamentos e contradições de 1968.

Jantá-los antes que eles nos almocem


O ex-ministro do Trabalho Jarbas Passarinho afirma com convicção que o AI-5 foi o corolário "do teorema chamado guerra fria". E a origem do endurecimento do regime militar, reitera, começou bem antes de 1968: teria sido em julho de 1966, quando um atentado praticado por esquerdistas explodiu uma bomba no Aeroporto de Guararapes, no Recife, onde o marechal Costa e Silva, "candidato" à Presidência da República, desembarcaria. "Ali nasceu um espírito: vamos jantá-los antes que eles nos almocem", afirma.

Ele insiste em que as Forças Armadas não praticaram a violência original: sua versão é de que os primeiros ataques vieram da esquerda e os militares só fizeram reagir. Ele isenta de críticas o Partido Comunista Brasileiro, que nunca aderiu à luta armada, mas diz que o restante da esquerda descambou para a violência e começou a atacar espaços que eram militares. "Aí, nós tínhamos de reagir, senão perdíamos a autoridade de governo."

Passarinho relata que, no começo de agosto de 1969, Costa e Silva lhe contou que em 1º de setembro assinaria um novo ato para reduzir a virulência do AI-5. Segundo essa versão, as aplicações do AI-5, que dependiam de aprovação do Conselho de Segurança Nacional (CSN), passariam a ser decididas apenas pelo marechal-presidente. Mas seis dias depois o marechal entrou em coma e foi substituído pelos ministros militares, a quem Ulysses Guimarães depois apelidaria de "os três patetas".

Passeata reclamava agenda democrática


"Foi uma surpresa. Não sabíamos o que fazer com aquele mar de gente. Não entendemos que aquela multidão exigia uma agenda democrática e não uma receita revolucionária", observa o ex-líder estudantil Jean Marc von der Weid, sobre a Passeata dos 100 mil, que aconteceu no Rio, no dia 26 de junho de 1968, e assustou o regime militar. "Ali, era hora de progresso democrático, como o que começamos a alcançar dez anos depois", diz. "Naquele momento, acenar com democracia teria tido grande impacto."

Jean Marc, economista, seria eleito presidente da UNE em 1969, batendo José Dirceu, então presidente da União Estadual de Estudantes de São Paulo. Quarenta anos depois, ele afirma que a revolução pretendida pela vanguarda da esquerda não se refletia na realidade: "O que fazíamos não era uma revolução". Para ele, o legado de 1968 foi a afirmação da democracia e a mudança dos comportamentos.

Ele conta que as lideranças estudantis, apesar de radicais, tentavam não irritar os militares. "Nas passeatas, fazíamos um esforço enorme para controlar as provocações." Nem sempre funcionava, porque sobravam dois tipos incontroláveis, diz: os "porra-locas" e os infiltrados pela repressão. No enterro de Edson Luís, por exemplo, um provocador gritou: "Vamos atacar o Palácio Guanabara!" (sede do governo da então Guanabara). "Foi difícil segurar", lembra.

Esquerda tinha de reagrupar forças


A partir de 1964, quando o golpe esfarinhou as facções de esquerda, a luta deveria se centrar no reagrupamento de forças, a ser conquistado com a paciência de uma organização lenta, afirma, com a experiência dos 90 anos, Armênio Guedes, histórico militante do Partido Comunista Brasileiro. O único grupamento de esquerda que atravessou todo o período ditatorial rechaçando a luta armada, o PCB se engajou em sua própria receita, diz.

"Havia muita influência radical em 1968. Não tínhamos força para impor nada aos militares. Nós tínhamos de reagrupar forças, não atacar um adversário que era mais forte e mais organizado que nós", observa. Cabia, naqueles momentos turvos, a "resistência possível", descreve. Ele não tem dúvida em afirmar que a luta armada acabou funcionando, nos anos seguintes, como combustível para alimentar a linha-dura militar.

Já o PCB, lembra, ajudou a organizar o MDB, para combater o regime militar pela via democrática. Em 1970, na primeira eleição com o AI-5 em vigor, o brasileiro negou adesão à luta - os votos brancos e nulos somaram 30,3% (em 2006, foram 10,5%). Mas, com o correr dos anos, confiou em que o voto era a sua arma para derrubar a ditadura. O ataque do regime ao PCB deu-se em 1975, quando os militares perceberam que a estratégia de lenta acumulação de forças pela via democrática começara a dar certo em 1974, quando o MDB elegeu senadores em 16 das 22 disputas estaduais.

“Aprendemos na carne o valor da democracia''
Rui Nogueira, BRASÍLIA

Quarenta anos atrás a estudante mineira Dilma Vana Rousseff Linhares ganhou um presente macabro e antecipado de aniversário. Ela completava 21 anos e tomava café da manhã na lanchonete Torre Eiffel, na Rua Espírito Santo, Belo Horizonte, quando foi avisada por um colega da Faculdade de Economia que, na noite anterior, 13 de dezembro de 1968, o governo baixara o AI-5.

A filha de emigrantes búlgaros (ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula desde junho de 2005), é testemunha do efeito violento do AI-5 naquela geração. Dilma escolheu o caminho da luta armada para fazer oposição aos generais - integrou a VAR-Palmares -, participou de assaltos a bancos e quartéis, acabou sendo presa (1970-1973) e torturada.Como assessora número 1 do presidente, quase uma "primeira-ministra", Dilma é hoje a mais alta autoridade do governo a ter sofrido nas mãos dos torturadores nos porões da ditadura.

Refletindo a experiência passada à luz da vida democrática de hoje, Dilma tenta sintetizar a herança daquele período: "A minha geração aprendeu com a dor na carne a importância da democracia." Veja a seguir o depoimento que a ministra concedeu ao Estado na quinta-feira sobre os 40 anos do AI-5:

"O AI-5 alijou a minha geração da política, proibiu-a de fazer discussões, exercitar a divergência, criticar, de, enfim, pensar politicamente pela sua cabeça. A juventude daquela época vinha de um processo acelerado de politização, que não tem as características do momento que vivemos hoje, numa democracia. As coisas hoje são mais lentas, mas, na minha época, a política era muito acelerada. Os estudantes faziam política e viam trabalhadores fazer as primeiras greves, de Osasco e Contagem, pós-golpe de 64.

O pré-AI-5 é um momento em que aconteciam todas as modificações. Havia uma efervescência que se manifestava mais fortemente na cultura, com o Arena, os shows. Isso tudo era uma ponte com o pré-64, uma efervescência absolutamente incompatível com o pensamento político dominante do governo. O AI-5 chega e é o fim de todas as liberdades. Desde a mais primária, o habeas-corpus. O Congresso se torna absolutamente lateral, o AI-5 emascula o Legislativo.

Com a decretação do AI-5, sentimos que qualquer opositor à ditadura corria grande risco. Lembro que na véspera do AI-5 todo mundo dizia que o fechamento do regime viria depois que a rainha Elizabeth (da Inglaterra) deixasse o Brasil. Passei a dormir fora de casa por achar que seria presa depois que a rainha fosse embora. Mas como isso não aconteceu logo, eu voltei.

Sentimos que caiu sobre o Brasil uma nuvem negra e se especulava sobre toda sorte de possibilidades. Desde a idéia de que o Brasil viraria uma grande Indonésia, com pressão e mortes até o fechamento do Congresso. Foi esse clima que moldou a consciência política de uma geração inteira. Isso ocorre em 1968 e vai num ritmo de definição por todo ano de 1969. Estabeleceu-se um imenso descrédito na possibilidade de luta política legal.

No pré-64 todo mundo acreditava que haveria avanços democráticos sucessivos, que o País seria transformado, que as reformas seriam feitas e seria construída uma nação desenvolvida. Essa história de que todos pensavam num Estado marxista-leninista era conversa de generais, fazia parte da acusação de que o governo Jango (João Goulart) instalaria uma república sindical. Os estudantes, na rua, com idades entre 16 e 20 e poucos anos, não tinham muito claro essa idéia de Estado marxista-leninista. A reforma era a visão predominante. O golpe de 64 passa a mensagem de que a democracia seria uma democracia para poucos. E ficou patente o processo conservador e concentrador de renda.

Quando se instaurou socialmente a ditadura, o pior efeito foi a descrença na possibilidade da democracia. E começa a haver uma grande crítica aos chamados reformistas, ao pessoal que achava que podia mudar o Brasil por meios pacíficos. Mas antes do AI-5, e como a vida é mais complexa, há um período, o pós-64, em que se fazem grandes passeatas, ainda se fazia política, reclamava, protestava. Quando fecha por completo, vem a sensação de impotência diante da ditadura.

Hoje, valorizamos a democracia. Quem respira não fica dizendo todos os dias que o ar é ótimo. Você está simplesmente acostumado a respirar. Hoje, a democracia é que nem o ar que a gente respira, mas, na minha geração de estudante e luta política não era assim. Vivi uma época em que a minha existência era simplesmente negada. Não era só o processo de repressão, tortura e morte, mas também o não reconhecimento de um estado de exceção, como essa coisa de não haver preso político no Brasil estando eu numa cadeia rodeada de presos políticos.

A sociedade estava proibida de reconhecer o estado de exceção e isso gera fenômenos como o que o jornalista Elio Gaspari descreve, o fenômeno do porão. A instituição (Exército) diz que nada tem a ver com o porão, não reconhece a situação, mas, estranhamente, a instituição é contaminada pelo que "não existe", o porão. A verdade é que houve uma relação dos setores privados com isso. Asseguro que a comida que comíamos na prisão, a quentinha fornecida aos presos políticos que não existiam, era fornecida por uma empresa privada. A Operação Bandeirantes (Oban, que estruturou a repressão) teve financiamento privado.

O pós-AI-5 contamina tudo, corrói o Estado. O mesmo que acontece em Guantánamo e aconteceu am Abu Ghraib, as instituições corrompidas. A tortura contamina tudo e ninguém, depois, protege essas cosias impunemente. Aquilo que Hannah Arendt dizia: você não mata 6 milhões de judeus sem cumplicidade. O AI-5 instaura esse processo.

Temos de entender que, desse período, herdamos um apoliticismo que é muito reservado na cultura brasileira. O que é bom é técnico; o ruim é o político. Isso deriva da ditadura, que precisou desconstruir a política como instância legítima e democrática para a disputa e a formação dos consensos. Foi preciso acabar com a política e, para isso, criou-se uma instância tecnocrática, que era justa, correta, que desmoralizava a política e dizia que ela era algo ruim, corrupta e perversa.

Esse é um processo que, de certa forma, ainda mantemos hoje. Muitas vezes me perguntam: "A senhora é técnica, não é?!" Como se fosse algo justo ter de ser técnico para assumir cargo no governo. Sempre conto uma historinha a propósito disso: ao final de uma reunião, na Bolívia, num governo passado (antes de Evo Morales), perto do final de ano, perguntei ao ministro das Minas e Energia se ele ia para casa e onde ele era, se em La Paz ou Sucre. Ele me respondeu que sim, que ao final da reunião ia para casa... em Miami. "Eu moro em Miami, sou um técnico."

Quem não tem raiz no país, quem não defende pelo menos um dos lados possíveis do debate, não tem compromisso com o país. A minha sorte tem de ser a sorte do país. Tem de ter lado, tem de fazer política no país. Há sempre escolhas a fazer. Um governo pode ser tudo, menos um governo de tecnocratas. Até porque nunca houve, literalmente, governo de tecnocratas. Os governos dos ditos técnicos não eram neutros, serviram a alguém, fizeram uma política conservadora, elitista e autoritária.

Hoje, 40 anos depois do AI-5, podemos dizer que o nosso processo democrático é muito mais profundo do que a gente pensa. Quantas eleições já fizemos... Somos, talvez, a democracia mais estável entre os países emergentes, uma conquista imensa - até porque a minha geração tem clareza do que significou o outro momento.

Nós aprendemos, da pior forma possível. As novas gerações estão aprendendo da melhor forma possível, que é exercendo a democracia. Naquele tempo, fazer greve era uma tarefa difícil, a greve comprometia o Estado. Onde já se viu! A minha geração aprendeu na carne a importância de democracia. E tem de brigar pela institucionalização da democracia. A luta na clandestinidade não é legal.

Naquela época, de 1969 a 1972, tivemos poucos caminhos. E foi uma época que produziu os "arrependidos", uma das coisas mais graves feitas pela ditadura, que foi obrigar algumas pessoas a irem à TV e se declararem arrependidas. Isso não se perdoa."

''É uma luta que não acaba nunca''
O governador José Serra entende que a melhor explicação que alguém pode dar aos jovens sobre o significado da ditadura é mostrar como ela era. "É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia", disse ele. Serra opinou que a busca pelo aperfeiçoamento da democracia "é uma luta que não acaba nunca". Eis a entrevista:

O senhor estava no Chile no dia 13 de dezembro de 1968. Como entendeu a notícia da edição do AI-5, na ocasião?


Pelas informações que recebia do Brasil, eu já estava aguardando um endurecimento do regime. Soube da notícia pela Conceição Tavares, quando estava de cama, com febre tifóide, uma infecção cuja incidência era relativamente alta na região de Santiago. Na época, minha mulher estava grávida, eu tinha acabado o curso de pós-graduação em Economia e havia sido contratado pela universidade. Eu não sou da "geração de 1968". Havia deixado o Brasil em 1964, depois do golpe. Era presidente da UNE e nas semanas que sucederam o golpe fui bastante procurado pelos órgãos de repressão. Sem condições de permanecer em liberdade, passei pela Bolívia e fui para a França, onde contava com uma bolsa para estudar Economia, embora fosse aluno de Engenharia, na Politécnica de São Paulo. Voltei ao Brasil em 1965, clandestino, mas não houve condições de permanecer. Fui então para o Chile, com o propósito de terminar meus estudos. Em 1966, fui condenado pela Justiça Militar, num processo inteiramente inventado. Por isso, havia perdido quase toda as esperanças de regressar ao Brasil, no curto prazo, para uma vida normal, aberta. O AI-5 eliminou esse "quase". Aliás, acabei tendo uma recaída da febre tifóide, o que é raríssimo. A probabilidade, segundo os médicos, era de 1%. Quem sabe foi uma somatização do AI-5.

E como o senhor o vê hoje?


Quarenta anos depois o vejo como o pior episódio da história brasileira do pós-guerra. Senti que iria se abater sobre as forças da esquerda, em todas suas variantes, uma repressão para valer. Seria a ditadura de verdade, sem passeatas nem canções de protesto. Não acreditava na solidez de uma reação armada. Fiquei no Chile até 1974, já com dois filhos. Lá, sofri a repressão que não chegou a me atingir no Brasil, pois fui preso depois do golpe e, creio, por pouco e por muita sorte, não entrei numa lista de "desaparecidos". Aprendi muito, muitíssimo, com dois golpes e dois exílios nas costas. Sobretudo, a nunca subestimar os valores da democracia, a importância de obedecer as regras desse regime e, também, das políticas públicas responsáveis.

A seu ver, que país saiu dessa experiência?


Um país mais complicado, mais difícil. Só nos livramos do AI-5 em 1979, e do regime autoritário, em 1985. O preço foi alto. A Nova República teve de se defrontar com enormes expectativas de liberdade e de solução rápida dos problemas de desigualdade, num Estado relativamente desorganizado. Entre as forças que vinham da esquerda, prevalecia, e isto aconteceu até o PT vencer as eleições presidenciais, a idéia de que mudança gradual é enganação, o que valia era a "ruptura", e que o governo estava sempre do lado errado. A ditadura que começou em 1964 e se materializou completamente em 1968 frustrou também a renovação política da sociedade brasileira. Grande parte do que havia de melhor na minha geração e nas seguintes ou ficou à margem da política ou não aprendeu a fazer a política democrática.

Qual o peso da resistência ao regime na construção de lideranças que hoje ocupam cargos importantes da administração pública do País?


Para algumas lideranças, a resistência contribuiu para firmar convicções mais realistas e solidamente democráticas. Para outras, não.

O senhor foi militante da Ação Popular (AP). Como viu, do exílio, a opção que a AP depois fez pela luta armada?


A AP, como tal, não chegou a entrar na luta armada, a praticar a luta armada. Eu acompanhei o processo a distância, pois não estava no Brasil e tive pouca influência direta nos rumos da AP. Depois de 1964, a AP optou pelo marxismo-leninismo, seja lá o que isso puder significar hoje em dia. Depois se desenvolveu uma vertente forte, maoísta. Mas o partido acabou se dividindo, com os maoístas indo para o PC do B, que efetivamente tentou fazer a luta armada no Araguaia. Os que ficaram com a AP, apesar de não se organizarem militarmente, foram sendo rapidamente dizimados, muitos sob as piores torturas, como Paulo Wright, para quem escrevi mais de uma vez insistindo para que saísse do Brasil, pois acabaria sendo morto. Ele e muitos outros.

O que o senhor pensava da luta armada?


Desde que deixei o Brasil, em 1964, eu era cético sobre as possibilidades de um enfrentamento armado do regime, seja no esquema do foco guerrilheiro, o "foquismo", que procurava replicar a revolução cubana, seja no esquema da guerra popular maoísta, do campo para as cidades. O texto clássico do foquismo foi do Régis Debray, intitulado Le Castrisme, la Longue Marche de l?Amérique Latine, publicado no Les Temps Modernes, revista do Sartre, que eu lia na França, quando lá estava. Não me seduziu nem intelectual nem politicamente. No Brasil, no final dos anos 60, o texto mais influente sobre o foquismo era de um militante da Var-Palmares ou da VPR, com o cognome de Jamil (Ladislau Dowbor).

Como explicaria aquele período aos jovens que não conheceram a ditadura?


Não é fácil explicar, mas basta descrever. A melhor explicação possível sobre o que significou a ditadura é mostrar como eram coisas quando ela prevalecia. É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia. E, tanto quanto isso, se prepare para lutar pela democracia. É uma luta que não acaba nunca.
Repressão mudou a disciplina militar
por Marcelo Godoy
Um ato de indisciplina criou a primeira operação de envergadura do Exército contra a guerrilha em São Paulo. A ação marcou o início da associação entre policiais e militares, que se tornaria característica da Operação Bandeirantes (Oban), modelo de um dos principais instrumentos do regime dos generais após o AI-5: o Destacamento de Operações de Informações (DOI). Marcou também um estilo de atuação, em que os órgãos operacionais ganharam autonomia dentro da cadeia tradicional de comando militar.

Fazia 41 dias que o AI-5 estava em vigor quando, em 23 de janeiro de 1969, quatro guerrilheiros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foram presos num sítio em Itapecerica da Serra, Grande São Paulo, pintando um caminhão com as cores do Exército. O grupo foi levado ao quartel da Polícia do Exército (PE), no Ibirapuera. Entre eles estava Pedro Lobo de Oliveira, sargento da Força Pública (antecessora da PM), cassado pelo AI-1, o primeiro ato de exceção do regime, baixado em 1964. "Primeiro, subi no pau-de-arara. Depois, me deram salmoura pelo nariz."

Queriam saber o que o grupo planejava. "O Caetano, um investigador, me interrogava." A presença do policial se explica pelo fato de a PE ter recebido o apoio de quatro homens do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), da Polícia Civil, formando o embrião da união de policiais e militares no DOI.

No dia seguinte, o comandante da 2ª Companhia da PE, major Jayme Henrique Antunes Lameira, pediu aos superiores autorização para deslocar sua tropa a Itapecerica, o que foi negado. Lameira desobedeceu e obteve do major Inocêncio Fabrício de Mattos Beltrão o apoio dos blindados que o colega comandava no 2º Regimento de Reconhecimento Mecanizado (RecMec). Recebeu ainda a ajuda de dois helicópteros.

A movimentação de tropas pegou Itapecerica de surpresa. À tarde, a Guarda Civil achou armamento militar num Fusca. Também encontrou no carro um caderno com o endereço e um recibo em nome de Carlos Lamarca. Lameira associou o nome ao de um capitão do 4º Regimento de Infantaria (RI), em Osasco. Eram 2h30 de sábado, 25 de janeiro, quando o major avisou os superiores da 2ª Divisão de Exército (DE).

Ouviu um coronel dizer que tudo seria resolvido na segunda-feira. Horas depois, Lamarca e mais três militares deixaram o quartel do 4º RI com 63 fuzis, 3 submetralhadoras e 1 pistola. Só não levaram mais armas porque deviam transportá-las no caminhão apreendido com Lobo.

A desobediência de Lameira não fez dele um indisciplinado aos olhos dos colegas, mas um oficial que usou a iniciativa operacional, reclamada nas ações antiguerrilha. "É a lei da eficiência. Em face dos revolucionários, é preciso um Exército revolucionário", disse em suas memórias o general francês Marcel Bigeard, que combateu os guerrilheiros que lutavam pela independência da Argélia. Em 1957, ao custo de 3 mil desaparecidos, os franceses acabaram com os atentados a bomba em Argel, ação que serviu de exemplo a militares sul-americanos.

Primeiro órgão híbrido de combate à guerrilha no País, a Oban foi criada em 1º de julho de 1969, seis meses após a desobediência de Lameira. Ela respondia à necessidade de comando único na luta contra a subversão. Em 1970, a Oban se transformaria no DOI. E o modelo se espalharia pelo País.

A autonomia das polícias estaduais para reprimir delitos contra a segurança nacional foi sacrificada em nome dos DOI, que eram subordinados a um órgão de coordenação: o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi). O complexo ficaria famoso sob a sigla DOI-Codi. À estratégia militar somaram-se as táticas policiais - foi nas polícias que os DOIs buscaram a maioria de seus agentes.

EMBAIXADOR



De todos os destacamentos do País, o de São Paulo foi o maior, com cerca de 300 homens. Seu primeiro comandante foi o major Waldyr Coelho, cuja autonomia provocou, a exemplo de Lameira, choques com seus superiores. Foi o que ocorreu em setembro de 1969, quando o major tentou impedir que os presos que seriam trocados pela libertação do embaixador americano Charles Elbrick, seqüestrado pela guerrilha, fossem embarcados para o Rio.

Essa história era um segredo mantido pelos militares. Até agora só era conhecida outra tentativa malsucedida, de um comando de pára-quedistas, de matar os presos no Aeroporto do Galeão, no Rio, antes do embarque para o exílio, no México.

Coelho sabia que 8 dos 15 detidos estavam em São Paulo: José Dirceu, Luís Travassos, Wladimir Palmeira, Onofre Pinto, Argonauta Pacheco, José Ibrahim, Rolando Frati, Maria Augusta Carneiro Ribeiro e José Leonardo Rocha. Quando soube da exigência feita pela guerrilha para soltar Elbrick, o major teve uma conversa tensa com o general Aloysio Guedes Pereira, comandante da 2ª DE.

"General, eu não vou aceitar. Eu não gastei minhas viaturas e o trabalho do meu pessoal para ver esses homens saírem daqui dando risada da gente."

"Mas esse é um problema internacional, não podemos fazer nada", respondeu o general.
Coelho achava que podia. Havia procurado o major Beltrão, do 2º RecMec, que ficava no complexo que abrigava a Oban. Conseguiu que o amigo mobilizasse os blindados, pondo-os no pátio com os motores ligados, prontos para saírem em coluna. A idéia era ir ao antigo Presídio Tiradentes, no centro, e cercá-lo. Caso tentassem retirar os presos de lá, Coelho os executaria. Estava tudo pronto quando o general Pereira chegou.

"Eu era novo e ele (Coelho) me disse: ?Corre, que nós vamos cercar os caras lá?. Só a muito custo é que conseguiram tirar os presos dali. Foi uma noite terrível. Mandaram um pessoal falar com o major; tudo passou, e os presos embarcaram", revelou ao Estado Antônio, oficial do Exército. "Ele (Coelho) tentou, sim, impedir o embarque", confirmou o agente J.A., que trabalhou em 1969 na Oban e depois foi para o Dops.

Coelho deixou o DOI em 1970. A estrutura que comandou só entraria em declínio a partir de 1977. Até aquele ano, o destacamento fizera 2.541 prisões e 54 pessoas morreram em suas ações, segundo um de seus oficiais, o capitão Freddie Perdigão. O DOI cairia em uma espécie de clandestinidade nos anos 80. Não mais prendia, mas vigiava os integrantes de movimentos sociais e partidos de esquerda. O consórcio entre policiais e militares só foi desfeito após uma reportagem do Jornal da Tarde, em 17 de abril de 1991. Ela denunciava o fato de 550 PMs permanecerem emprestados para duas dezenas de órgãos em vez de trabalharem na corporação. O governo reagiu e determinou a volta de todos à polícia. Entre eles havia os 82 praças e 2 oficiais que ainda estavam na 2ª Companhia de Informações - a sucessora do DOI.

1964
31/3 Golpe militar derruba o presidente João Goulart
4/4 O marechal Humberto Castelo Branco é escolhido Presidente
9/4 Ato Institucional dá ao presidente poderes para cassar mandatos e suspender direitos políticos
22/7 Mandato de Castelo Branco é prorrogado até 15 de março de 1967. Fica adiada para outubro de 1966 a eleição presidencial prometida pelo regime

1965
3/10 Realizadas eleições para governador em 11 Estados. A oposição vence em 2: Minas e Rio
27/10 Ato Institucional 2 (AI-2) extingue os partidos, amplia prazo para cassações de
mandatos e define que cabe à Justiça Militar julgar civis acusados de crimes contra a
segurança nacional

1966
5/2 AI-3 fixa eleição indireta para governadores
25/7 Atentado frustrado ao general Artur da Costa e Silva, ministro da Guerra e candidato
à Presidência, no Aeroporto de Guararapes, Recife (PE).
Morrem um vice-almirante e um secretário de Estado
3/10 Costa e Silva é eleito indiretamente pelo Congresso
22/10 Parlamentares se recusam a aprovar cassações e Castelo Branco decreta o recesso do Congresso por um mês

1967
24/1 Promulgada a nova Constituição
15/3 Costa e Silva é empossado
18/7 Castelo Branco morre em acidente aéreo

1968
28/3 O estudante Edson Luís de Lima Souto é morto no restaurante universitário Calabouço, no Rio, durante confronto com a PM
29/3 Em passeata no Rio, 50 mil protestam contra o assassinato
30/3 Passeatas irrompem em todo o País. Ministro da Justiça Gama e Silva proíbe protestos
26/6 Passeata dos 100 mil no Rio
Atentado em quartel do 2º Exército em São Paulo mata o soldado Mário Kozel Filho
1/7 Militantes do Comando de Libertação Nacional (Colina) executam o major alemão Edward von Westernhagen, confundido com o capitão boliviano Gary Prado, colega do alemão no Curso de Estado-Maior, no Rio. Prado ganhara fama com a caçada e morte de Che Guevara, na Bolívia
17/7 Elenco da peça Roda Viva, de Chico Buarque, é espancado em São Paulo pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC)
30/8 Invasão do campus da Universidade de Brasília (UnB)
2/9 Em discurso na Câmara, o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara, critica Exército e, irônico, pede às jovens que não namorem oficiais
2/10 Invasão da Universidade de São Paulo pelo CCC
12/10 Assassinato do capitão americano Charles Chandler
Prisão de 920 estudantes durante o congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP)
12/12 Câmara rejeita pedido para processar Moreira Alves
13/12 AI-5 é aprovado
22/12 Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros artistas são presos no Rio

1969
25/1 Capitão Carlos Lamarca deserta e furta armas do quartel do Exército em Quitaúna, em Osasco (SP)
16/5 AI-10 aposenta compulsoriamente centenas de professores universitários
1/7 Criação da Operação Bandeirantes (Oban)
29/8 Costa e Silva sofre derrame
31/8 Junta Militar assume poder
4/9 No Rio, o embaixador americano Charles Elbrick é seqüestrado pela Aliança Libertadora Nacional (ALN) e pelo Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Elbrick é solto quatro dias depois, em troca da deportação de 15 presos políticos
25/10 Congresso elege o general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência

1970
Janeiro A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Lamarca, inicia uma base de guerrilha no Vale do Ribeira
11/3 VPR e Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) seqüestram em São Paulo o cônsul japonês Nobuo Okuchi. Ele foi trocado por 5 presos políticos
11/6 VPR e ALN seqüestram, no Rio, o embaixador alemão, Ehrenfried von Holleben. Ele foi solto após a deportação de 40 presos
7/12 Seqüestro do embaixador da Suíça, Giovanni Bucher, em ação da VPR comandada por Lamarca, no Rio. O regime liberta 70 presos políticos

1971
17/9 Exército mata Lamarca no agreste baiano

1972
12/4 Exército começa o combate à guerrilha no Araguaia, comandada pelo PC do B

1973
14/9 Arena, partido governista, oficializa o general Ernesto Geisel como candidato a suceder Médici
7/10 Exército reinicia ofensiva no Araguaia, que levará, em dezembro, à vitória sobre a guerrilha

1974
15/1 Colégio Eleitoral homologa a vitória de Geisel na eleição
15/11 Num sinal claro do desgate do regime, o oposicionista MDB consegue 16 vagas nas eleições para o Senado e 160 cadeiras na Câmara; a Arena fica com, respectivamente, 6 e 204 cadeiras

1975
3/1 Suspensa censura prévia ao jornal O Estado de S. Paulo
26/10 Anúncio da morte do jornalista Vladimir Herzog no Codi provoca reação da imprensa, setores da sociedade e líderes religiosos em São Paulo

1976
17/1 O operário Manuel Fiel Filho morre no DOI . Geisel afasta o general Ednardo D?Ávila Melo
14/6 Lei Falcão limita a propaganda eleitoral no rádio e TV
19/8 Atentado à ABI, no Rio

1977
1/4 Pacote de Abril prevê a eleição indireta dos governadores e de um terço dos senadores
22/9 PUC em São Paulo é invadida por 900 policiais
12/10 Geisel demite o ministro do Exército, Silvio Frota, da linha-dura do regime
31/12 Geisel lança o general João Figueiredo para sucedê-lo

1978
Maio Luiz Inácio Lula da Silva comanda greve no ABC
15/10 Colégio Eleitoral aprova a indicação de Figueiredo

1979
1/1 Oficialmente extinto o AI-5
A tortura e a morte, pela voz dos porões
Agentes da mais secreta seção do DOI contam pela primeira vez as táticas da repressão durante a fase mais dura do regime

por Marcelo Godoy

Pela primeira vez uma dezena de agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI) de São Paulo decidiu falar. Diretamente envolvidos nas operações contra a guerrilha urbana, eles trabalharam na mais secreta das seções do órgão: a Investigação. Alguns dos nomes pelos quais serão chamados são fictícios, outros eram seus codinomes verdadeiros. O que eles relatam aqui ao Estado são detalhes de como funcionou a estrutura que possibilitou a prisão, a tortura e a morte de dois casais de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos de esquerda que pegaram em armas contra o regime militar.

São dois casos exemplares, que representaram o fim de uma era e o início de outra no DOI. Ninguém mais que estivesse marcado para morrer teria a execução justificada com a encenação de um tiroteio: o segredo e o desaparecimento se tornariam regras. A mudança coincidiu com a saída do tenente-coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra do comando do DOI, em 1974, e a posse do tenente-coronel Audir Santos Maciel. Os dois chefiaram o órgão no período mais duro da repressão. Eles são alvos, desde maio deste ano, de ação do Ministério Público Federal que busca responsabilizá-los por torturas e mortes, como no caso do guerrilheiro Antônio Carlos Bicalho Lana e de sua companheira Sônia Maria Moraes Angel Jones.

Filha do então tenente-coronel do Exército João Luiz de Moraes, Sônia fora casada com o líder do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) Stuart Edgar Angel Jones, cuja morte em 1971 fez a mãe, a estilista da alta sociedade carioca Zuzu Angel iniciar sua militância contra o regime.

Zuzu morreria em um mais que suspeito acidente de carro no Rio, em 1976. Antes, sofreria a perda da ex-nora. A morte de Sônia foi daquelas que pareciam embutir um recado, como se fosse necessário afirmar que todos eram iguais perante o DOI, da mesma forma que, nos anos 70, a placa na entrada do Palácio da Polícia, no centro de São Paulo, informava: "Contra a Pátria não há direitos."

Lana, seu companheiro, era, como Sônia, de uma geração de militantes de esquerda - muitos deles saídos do movimento estudantil - que acreditou na luta armada como o caminho para o socialismo no Brasil. O guerrilheiro era um dos últimos cabeças da ALN ainda vivos. Creditavam-lhe a participação em dezenas de assaltos e mortes. "Ele virou ?objeto de desejo? depois que mataram o Otavinho (Otávio Gonçalves Moreira Junior era delegado do DOI de São Paulo. Foi morto a tiros em 73, no Rio, pela ALN e outras duas organizações)", disse o tenente João.

O casal foi o alvo de uma operação em que se mesclaram o controle de militantes deixados em liberdade (montaria), a vigilância de quem será preso (paquera), o uso de informantes (cachorros), a prisão (cana), a tortura (pau) e a simulação de tiroteio (teatro). "Eles estavam em um ônibus, que parou num posto de venda de passagens, perto do Canal 1, em Santos", conta o agente Alemão. Lana desceu e foi comprar os bilhetes para São Paulo - Sônia ficou no ônibus. Enrolada em uma toalha, ele carregava uma pistola. "Ele (Lana) não pensava duas vezes: metia bala", diz outro oficial.

Antes de ele chegar ao guichê, um homem baixo, de cabelos castanhos, aproximou-se a passos largos e se atirou em cima de Lana. Em segundos, outros cinco homens armados se atracaram com o guerrilheiro enquanto dois passageiros se levantaram e detiveram Sônia. Quatro dias depois, a morte do casal foi noticiada pelos jornais. O comunicado do Exército dizia que haviam resistido à prisão, na zona sul de São Paulo, sendo alvejados num tiroteio.

Quem comandou a operação e foi o primeiro a pôr as mãos em Lana era o chefe da Investigação do DOI: o capitão do Exército Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney. "Ele nos dava todo apoio", diz a tenente Di. Seus antigos subordinados só têm elogios ao homem. Dizem que "era um patriota", que sua "coragem e determinação" o transformavam no "grande motor do DOI", como o delegado Sérgio Paranhos Fleury foi para a polícia. A exemplo deste, Ney também fez muita gente desdaparecer. Quando PMs do destacamento lhe pediram que intercedesse pelo grupo a fim de apressar suas promoções, Ney disse: "Nós estamos lutando pelo bem do Brasil. Não esperem recompensa."

INFORMANTES


O nome código da operação que levou às prisões em Santos era Fritz-Litoral. Ela começou meses antes, quando Ney transformou em informante um bancário ligado à ALN e ao antigo comitê municipal de São Paulo do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Era o agente Fritz, que militara ao lado de lideranças do Partidão, como Argonauta Pacheco e Lindolfo Silva. Ele foi preso pela primeira vez em 1969, na esteira das delações feitas por um colega da ALN, organização que nascera de um racha do PCB comandado em 1967 por Carlos Marighella.

Solto em 1971, Fritz foi novamente detido. Desta vez, sua passagem pelo DOI não deixou registro. A prisão havia sido feita pelos homens do Doutor Ney e, quando isso acontecia, era mau sinal. "Ou virava informante ou viajava (desaparecia)", diz o tenente Zé, da PM. O informante mantinha uma gráfica na Vila Maria, na zona norte, um negócio consentido pelo DOI. Em 1973, foi trabalhar no curso de alfabetização de adultos do padre Giorgio Callegari, nas salas paroquiais da igreja da Vila Santa Catarina, na zona sul. O padre era outro ex-preso político. As aulas eram à noite para turmas de até 40 alunos. Fritz ensinava n as 3ª e 4ª séries do curso. Ficou ali até 1979.

"Eu conheci o Fritz. Vi ele cobrir ponto como apoio da ALN. Foi preso pelo Doutor Ney, foi pro pau e virou", disse João. Cada informante tinha um "controlador". No caso de Fritz, era o sargento Fábio, do Exército. Fábio controlava outro informante, muito mais importante do que Fritz. Tratava-se de Jota. Os dois cachorros ajudaram o DOI a descobrir o paradeiro dos remanescentes da ALN em São Paulo, entre eles Lana. O informante permitia que os agentes o seguissem até que seus contatos fossem identificados. "Eu nunca desconfiei dele (Fritz)", disse Cloves de Castro. Integrante da ALN, Castro era desses militantes, a maioria ex-presos, que vez ou outra os militares seguiam em segredo. Eram as montarias.

Fritz informou ao DOI que um dos seus contatos lhe falara de um militante importante, "comando da ALN". Jota fez o mesmo. Este, segundo o agente Fábio, contou que o tal dirigente se encontrava com o jornalista Luiz Roberto Clauset. Os militares passaram a vigiar Clauset até que ele teve um ponto no dia 19 de novembro de 1973.

"Foi na antiga rodoviária. Ele (Clauset) foi ao ponto e aí quem entrou foi o Bruno (codinome de Lana). A turma foi atrás dele. Se ele grilasse (desconfiasse) era pra pegar. Da hora em que viram, não escaparia mais", contou João. Os homens das equipes Aldeia, Cúria, Jandaia, Pluma e Curinga, da Investigação, estavam no DOI quando a notícia chegou. Mais de 20 agentes recebiam a Medalha do Pacificador em cerimônia interna com a presença do general Humberto Souza Mello, comandante do 2º Exército.

Os militares seguiram o suspeito até a zona sul, onde ele comprou passagem para Santos numa agência da Viação Cometa. Suspeitavam de que se tratasse de Lana, mas estava difícil identificá-lo, pois ele tingira os cabelos. Dois agentes subiram no ônibus e uma equipe foi atrás em um Fusca. Em Santos, na divisa com São Vicente, o suspeito entrou num prédio. "Era um prédio mixuruca, na avenida que sai da linha do trem. Ele parou no primeiro andar. Ficamos embaixo da janela, conversando", afirma um dos agentes.

Foi quando Ney chegou. O capitão mandou que todos saíssem dali para não alertar o alvo. De manhã, quando voltaram ao lugar, descobriram que Lana se mudara com uma mulher. O DOI foi atrás do taxista que transportara o casal e descobriu que ele estava em São Vicente. O sargento Fábio trouxe o informante Jota, que confirmou: o suspeito era Lana.

O DOI alugou um apartamento em frente ao do casal. "À noite, meus colegas vigiavam e eu chegava às 3 horas para rendê-los", disse um agente. Queriam identificar os contatos de Lana. Ele costumava sair às 7 horas. Uma vez foi ao mercado. Outra foi com Sônia à praia. A vigilância durou uma semana. "Ele era uma das figurinhas carimbadas", contou Alemão.

No dia da captura, a tenente Neuza estava com o sargento Cartucheira no apartamento alugado. Ney chegou com o capitão Freddie Perdigão, o Doutor Flávio. O chefe da Investigação entrou e foi ao banheiro. Foi quando Neuza viu o casal sair. "Sai! Sai, que o cara saiu", gritou a tenente para Ney, batendo na porta. Às 6 horas, o casal apanhou o ônibus da Viação Zefir que ia para São Paulo. O DOI foi atrás. Como não tinham bilhetes, Lana desceu para comprá-los. "O único que não tinha medo era o Ney. No dia pra pegar o Bruno (Lana), se o baixinho não sai com tudo e voa pra cima do cara...", contou um tenente. "Foi aquela briga. Ele (Lana) ?tava? de calça de abrigo e tinha uma 45 enrolada na toalha", lembrou Alemão.

SÍTIO E BOATE


O guerrilheiro recebeu uma coronhada, assim como Ney, ferido acidentalmente por um subordinado. No ônibus, dois agentes prenderam Sônia. Cada detido foi posto num carro. Lana subiu a Serra do Mar no Corcel do Doutor Ney. Ele e Sônia foram levados a um dos centros clandestinos de detenção da Investigação: o Sìtio, no Cipó, na zona sul - o outro era a Boate, em Itapevi, na Grande São Paulo. "O Ney queria os cabeças. Ele não matou o Bruno (Lana) porque queria informação. É que um informante contou que eles (os guerrilheiros) tinham os endereços de vários oficiais do DOI, daí por que não se podia ?fazer? (matar) na hora", disse um oficial. O destino de Bruno, no entanto, estava selado. Ele ia morrer. Sua companheira também não ficaria viva.

Ex-aluna da Universidade Federal do Rio, Sônia foi cassada em 1969 com base no Decreto 477, que expulsava das instituições de ensino estudantes que tivessem militância política. Vivia, então, com Stuart, o filho de Zuzu. Em 1970, exilou-se na França. Lá soube, no ano seguinte, que o companheiro morrera. Ele havia sido torturado por militares para revelar o paradeiro do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca. Arrastaram-no amarrado a um jipe, respirando a fumaça do escapamento. Sônia decidiu voltar ao Brasil. Contatou a ALN e, em 1973, entrou clandestina no País. Tornara-se Esmeralda Siqueira Aguiar.

No Sítio e na Boate, os presos ficavam acorrentados em argolas presas às paredes. "O Sítio era do Fagundes, um paisano amigo do Ney", disse João. A Boate era do irmão do subtenente Carlão. O acesso a eles era restrito até para integrantes da Investigação. Normalmente só militares do Exército os freqüentavam, como Carlão, os sargentos Pedro Aldeia e Fábio e os capitães Ney e Perdigão. O tenente Zé foi convidado a fazer um bico na Boate. "Eu não quis. Aquilo não era serviço para mim", disse. "A pessoa que ia viajar não entrava no Açougue (DOI), porque lá tinha muita gente, a guarda toda. Ou ia pro Rio (de Janeiro) ou para a Boate", afirmou outro agente.

Antes de executar o casal com tiros no tórax, cabeça e no ouvido, era preciso justificar as mortes. O teatro simulando a perseguição e o tiroteio foi encenado na zona sul. Uma tenente da PM fez o papel de Sônia e um agente, o de Lana. "Eu lembro um dia do Habib... coitado ele não sabia de nada. Chegaram lá e deram uns tiros de festim num colega dele. (...) Ele não sabia do cirquinho e pra ele foi real. O Aldeia foi quem deu os tiros. ?Por que é que o Aldeia está matando ele?? (dizia o Habib) (...) Fazia o cirquinho e o jornal publicava que eles tinham sido mortos num tiroteio", disse um oficial. Era 30 de novembro quando o tenente João presenciou a chegada dos corpos de Sônia e de Lana ao DOI. "Aí foi feita aquela fotografia para o fichário, depois mandaram para o IML (Instituto Médico-Legal)."

Em 1º de dezembro, o pai de Sônia leu em O Globo que "as forças de segurança" mataram Esmeralda e seu companheiro. O oficial reuniu a família e todos foram a São Vicente. Ao chegar, achou o apartamento da filha ocupado por homens do DOI que esperavam que algum militante incauto se aproximasse. "O coronel foi à casa; ou ele contatava a organização ou a organização contatava ele. Ele tomou umas porradas sim, porque chegou botando banca... foi mais na base do vamos ver quem manda mais", disse João.

O coronel e a família foram obrigados a seguir para um hotel em São Paulo. A mãe de Sônia ainda teve tempo de levar um par de óculos e um carretel de linha, lembranças da filha. No dia seguinte, o pai depôs no DOI. "Indaguei aos interrogadores a respeito do paradeiro da minha filha, e um me respondeu que o corpo só podia ser visto com a autorização do comandante do 2º Exército", contou ao Grupo Tortura Nunca-Mais.
O coronel buscou ajuda e acabou preso quando tentou conversar com o general Mello. Em depoimento à Biblioteca do Exército, o coronel Maciel, que assumiria o DOI dois meses depois, disse que deu ao pai de Sônia o número de sua sepultura no Cemitério Dom Bosco, em Perus, em São Paulo. "E o problema acabou para nós. Anos depois, esse cidadão se transformou no primeiro chefe ou líder dos terroristas (referência ao fato de o coronel chefiar o Grupo Tortura Nunca-Mais), embora fosse tenente-coronel. Fico até revoltado quando me lembro do fato." Maciel reafirmou a versão de que o casal morreu em tiroteio, "o último na rua que houve em São Paulo". De fato, em seu comando no DOI (1974-1976), não houve mais teatro. O método acabou com a saída de Ustra. A partir de então, todos desapareceram, sem explicações.

DESAPARECIDOS


Foi o que ocorreu com o segundo casal dessa história: Wilson Silva e Ana Rosa Kucinski. Os agentes contam que, sob o comando de Maciel, eles foram presos em São Paulo, em 22 de abril de 1974, e levados ao Rio. "Eu prendi o Wilson Silva no Anhangabaú. Ele era comando nacional da ALN. Seguimos muito tempo o Wilson. Ele tinha uma casa na Rua Padre Chico. Eu grudei nele e uns quatro ou cinco (colegas) grudaram nele. Todos queriam o homem'', disse o tenente Zé. O ex-agente Marival Chaves, o Doutor Raul, era até então o único a confirmar a prisão. Marival era amigo de Pedro Aldeia, homem de confiança de Ney. "O casal foi morto no Rio", disse o agente Fábio. Lá, em Petrópolis, havia outra prisão clandestina.

Wilson caiu preso porque teve contatos com gente vigiada pelo DOI por meio dos cachorros que levaram a Lana e Sônia: Jota e Fritz. Com este último, o dirigente da ALN se reuniu numa festa na igreja na zona sul em que o informante dava aulas. "Ele (Wilson) sabia que estava sendo seguido. Todo ponto que ia cobrindo ele avisava as pessoas", contou o tenente Zé.

Um desses pontos foi no centro. "No meio da conversa, ele (o contato de Wilson) se virou e nos viu. Ele empalideceu. Eu disse ao Perdigão: ?O Wilson avisou o cara.? Mas o Perdigão disse que eu ?tava? vendo fantasma." Terminado o encontro, o contato de Wilson correu e entrou na Rua Direita. Ia e voltava, como se quisesse surpreender quem o seguia. Pegou um ônibus e desceu na Consolação.

"Ele saiu do coletivo tão apressado que atropelou uma agente nossa, a tenente Di, e apanhou um táxi. Foi parar numa favela na zona sul. O Perdigão foi atrás e caiu numa fossa. O cara escapou", contou Zé. As prisões ocorreriam dias depois, quando Wilson desceu de um Fusca, no Anhangabaú, no centro. Olhou para os lados e, ia atravessar a Avenida 23 de Maio, quando foi agarrado por Zé. Mais adiante, outros agentes detiveram Ana Rosa. O casal foi entregue ao Doutor Ney.

Wilson se tornou o último chefe da ALN em São Paulo a morrer. Fundada por Marighela, a organização chegou ao fim em 1974. O destino do casal começou a ser desvendado quando agentes do DOI tentaram vender informações sobre Ana Rosa ao irmão, o jornalista Bernardo Kucinski. Descobertos, Jamil, Junior e Márcio foram expulsos do destacamento.

Oficialmente, o casal nunca foi detido. Seu sumiço foi o prenúncio do que ia ocorrer com metade do Comitê Central do PCB. O Partidão era contra a luta armada. Defendia a volta das liberdades democráticas e a política de frente ampla com a oposição legal, agrupada no MDB. Mas o DOI pensava diferente. "O PCB era a base de todo o terrorismo. De lá haviam saído Marighella, Joaquim Câmara Ferreira e outros. O Comitê Central era importante acabar, pois ele é que organizava o partido, que era ilegal", disse Antônio, oficial do Exército.

Vários líderes do Partidão morreram na Boate. Corpos esquartejados foram amarrados a mourões e lançados de madrugada num rio. "Era perto de Avaré", disse um oficial. "O Marival é um traidor, mas não mentiu (Marival foi o primeiro a falar da Boate, em 1992; nas buscas feitas num rio em Avaré, os bombeiros só acharam pedaços de concreto)", contou Zé. O método só acabaria com nova troca do comando. Maciel e o general Ednardo D?Ávila Melo, chefe do 2º Exército, foram substituídos após a morte do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI de São Paulo, em 1976.

Mais tarde, outras mudanças afetariam os agentes. Everaldo "virou crente". Habib "ficou meio matusquela". Ney "se matou". Houve quem se acabou na bebida ou passou a "ver fantasmas". "Mas o importante nisso tudo é que quem levou a esse estado de coisas foram eles, o Marighella, o Lamarca. Eles é que criaram essas organizações subversivo-terroristas. Quem provocou a guerra foram eles. O Exército teve de reagir, e você sabe: em toda batalha morre inocente. O (Vladimir) Herzog foi um deles, o Manuel Fiel Filho foi outro. Se você me perguntar se valeu a pena, eu vou dizer que sim, pois foi por causa de nosso trabalho que hoje vivemos numa democracia e você pode fazer o seu trabalho", disse Antônio. Ele é apenas um dos agentes do DOI que fariam tudo de novo.
Cultura de resistência
Produção artística que enfrentou a ditadura e nem a censura conseguiu domar já estava em gestação antes do golpe


por Luiz Zanin Oricchio


A onda artística que veio se quebrar contra a muralha do AI-5 já estava em formação havia muitos anos. Mesmo antes de 1964, surgiram núcleos de renovação estética, como a bossa nova, o Cinema Novo, os Teatros de Arena e Oficina, os Centros Populares de Cultura, a poesia concreta.

Após o golpe, o poder mostrou-se incapaz de controlar essas manifestações. Filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, foram concebidos ainda em 1963, no governo Goulart, mas desenvolveram suas carreiras no ano seguinte.

Morte e Vida Severina, peça baseada no poema de João Cabral e musicada por Chico Buarque, era assistida no Tuca, em São Paulo, como cerimônia de indignação cívica. O contraponto carioca era o show Opinião, levando a platéia a um transe contestador. No teatro, o transe dava-se no Arena, com a peça Arena conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. As canções de Chico e de Geraldo Vandré embalavam toda uma geração que pedia reformas sociais.

Como o enfrentamento entre sociedade e governo acirrou-se em 1967 e 1968, tal fato não poderia deixar de refletir-se nas artes. Em 67, aparecia um filme genial e desesperado, Terra em Transe, de Glauber. Os festivais ferviam, e músicas como Disparada, de Théo de Barros e Vandré, diziam o que parte significativa da sociedade, na oposição, queria ouvir. No teatro, a releitura radical de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, fazia de José Celso Martinez um dos principais nomes da época. Na literatura, Quarup, de Antonio Callado, discutia a opção armada na contestação ao regime. E, nas artes plásticas, Hélio Oiticica inaugurava Tropicália, "ambiente instalação" que iria ter grande influência no desenvolvimento da música popular.

Inspirou o Tropicalismo, movimento contestador em termos comportamentais, que rompia com o discurso estético (e político) da esquerda tradicional, mas incomodava profundamente a direita.

Depois do AI-5 a censura se torna absoluta e a perseguição ganha ares de "legalidade". Muitos dos artistas mais incisivos seguem para o exílio, como Glauber, Caetano, Gil, Chico, Vandré, Zé Celso, entre outros.

O desafio passou a ser "driblar" a censura, passando mensagens cifradas que poderiam ser compreendidas pelo destinatário avisado. No sambão Aquele Abraço, Gil falava do exílio. Em Alfômega, murmurava, entre os dentes, o nome de Carlos Marighella. Mas o hino da resistência veio mesmo com Chico e Apesar de Você, cujos versos "Apesar de você/Amanhã há de ser outro dia" falavam da inevitável transitoriedade histórica da ditadura.

O cinema valeu-se de um barroquismo alegórico para passar pela censura. São os casos de Azyllo Muito Louco, adaptação de Nelson Pereira dos Santos para O Alienista, de Machado de Assis, Pindorama, de Arnaldo Jabor, e tantos outros. Alguns cineastas encontraram meios diferentes para evitar a censura. Joaquim Pedro, em Os Inconfidentes, usa o texto dos Autos da Devassa da Inconfidência para, de esguelha, refletir sobre o momento político. São Bernardo, de Leon Hirszman, recorre a Graciliano Ramos para conduzir sua reflexão anticapitalista.

 O cinema dito "marginal" gera um grito de desespero, criativo porém politicamente inarticulado, e busca no deliberado mau gosto expressão para o momento de sufoco social - casos de Bang Bang, de Andrea Tonacci, e Matou a Família e Foi ao Cinema, de Julio Bressane. No teatro, a censura continuava atenta e uma peça como Calabar, de Chico e Ruy Guerra, esbarrou em seu veto.

A chegada de Geisel ao poder dá início à política de distensão. Com a criação da Embrafilme, remanescentes do Cinema Novo voltaram-se para a produção de filmes de sucesso. São da década de 70 os maiores êxitos de público do cinema brasileiro, como Dona Flor e seus Dois Maridos, Xica da Silva e A Dama do Lotação. Muitos interpretam essa domesticação do cinema, sob a guarida do Estado, como mais eficaz que qualquer lei de censura.

O fato de a produção artística ter se mantido, ainda que precariamente, na década de 70, e produzido algumas grandes obras pode ser considerado quase um milagre. A música de Milton Nascimento, Caetano e Chico, livros como Reflexos do Baile, de Callado, peças como Gracias Señor, no Oficina, eram atos de desobediência civil. Mas já não atingiam a sociedade como antes, e nem poderiam fazê-lo, pois se vivia um tempo de medo antes que a abertura se completasse.

Acreditava-se que, após o AI-5, jorrariam obras deixadas no fundo da gaveta. Engano. Com notáveis exceções, a década de 1980 foi das mais medíocres no plano artístico, embora embalada pelas Diretas-Já. Algo se quebrara ao longo da fase feroz da ditadura. A atividade artística nunca mais seria a mesma dos anos 60, mesmo porque o tempo já era outro. No silêncio da história, a presença da indústria cultural havia se intensificado, e a "arte para o mercado" surgia como a fórmula mais eficaz para a esterilização da arte contestadora e radical.
''Estado'' liderou resistência à censura
Jornal sofreu atentados, teve edições apreendidas e conviveu com censores na redação, que cortaram 1.136 textos em dois anos


por José Maria Mayrink


A censura prévia começou no Estado de S. Paulo na noite de 12 de dezembro de 1968, véspera da edição do AI-5, que sufocaria a imprensa nos anos seguintes. Desde o golpe militar de 1964, houve muita pressão, ameaças e até atentados contra o jornal, mas os censores ainda não freqüentavam a redação. A repressão só chegou para valer quando a Câmara negou a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB do antigo Estado da Guanabara, que fizera discursos considerados ofensivos às Forças Armadas.

No dia 12, o general Sílvio Correia de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo, telefonou para a redação do Estado para saber qual seria a manchete do dia seguinte. Aparentemente, deu-se por satisfeito quando o editor-chefe, Oliveiros S. Ferreira, leu o texto. "Câmara nega; prontidão", informava a primeira página. Na manhã do dia 13, o jornal foi apreendido. O general liberou a notícia, mas não gostou do editorial Instituições em frangalhos, no qual o diretor do Estado, Julio de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, denunciava a arbitrariedade e criticava o comportamento do presidente Costa e Silva. Era um texto duro e corajoso, que refletia a tradicional independência do jornal diante dos governantes.

Foi o último editorial de Julio de Mesquita Filho. Em sinal de protesto contra a censura, ele deixou de escrever na seção Notas e Informações, na página 3, que registra a opinião do Estado, sempre clara diante de fatos nacionais e internacionais. Revoltado com a apreensão do jornal, ele mandou o filho Julio de Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de Abreu Sodré e ao general Sílvio que, em nenhuma hipótese, faria autocensura. Se o governo quisesse proibir alguma notícia, que pusesse censores na redação. Sua resistência custou caro.

"O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai", disse o jornalista Ruy Mesquita, em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho. Era um homem de boa saúde, mas caiu doente quando parou de escrever o editorial e morreu em julho de 1969, sete meses após a edição do AI-5. Revolucionário da primeira hora, havia conspirado para a deposição de João Goulart e apoiado o projeto do marechal Castelo Branco, acreditando em sua promessa de redemocratizar o País. Rompeu com o regime quando o governo militar baixou o AI-2 e cancelou as eleições presidenciais previstas para outubro de 1965.

Apesar do cerco policial, milhares de exemplares do Estado chegaram às ruas na manhã do dia 13. O pessoal da expedição armou uma operação de guerra. "Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos mais de 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição", lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, no centro de São Paulo, onde ficava a sede do jornal.

Também o Jornal da Tarde, vespertino do Grupo Estado, foi proibido de circular e apreendido. Seus diretores se recusaram a trocar textos considerados "mais exaltados", depois de terem publicado, no dia 12, um editorial sobre a crise política com o título Mais uma demonstração de inviabilidade do regime.

Repórteres e editores fizeram um esquema semelhante ao do Estado para garantir a distribuição. Enquanto a polícia vigiava a Major Quedinho, 84.900 exemplares deixaram o prédio pelo outro lado, pela Rua Martins Fontes.

O general Sílvio ficou furioso. Percorreu as bancas do bairro de Higienópolis para recolher o JT pessoalmente. "Esse jornal traiu a Revolução", gritava. Milhares de exemplares do Estado e do JT chegaram às cidades de Campinas, Sorocaba e Santos, num raio de 100 quilômetros. Os poucos que alcançaram outras cidades, como Rio, Salvador e Recife, eram disputados de mão em mão.

Na noite de 13 de dezembro, os censores se instalaram na redação, enquanto os jornalistas, atônitos, se agrupavam ao lado de um aparelho de TV para assistir ao anúncio do AI-5. No vídeo, o locutor oficial Alberto Curi leu o texto ao lado do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da Universidade de São Paulo. Era uma medida esperada, apesar de desmentidos de autoridades como o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, mas no primeiro momento ninguém sabia o que fazer.

Quando o jornal começou a rodar nas máquinas do andar térreo, um grupo de repórteres e redatores atravessou a Rua da Consolação para conversar num boteco. Alguns pensaram em reagir, mas não viam como. Outros tentaram negociar com os censores. A edição do dia 14 noticiou as agruras da véspera. "Novo ato; Congresso em recesso", era esta a manchete do Estado. Nas colunas laterais da primeira página, detalhes sobre a apreensão dos jornais e um relato de Julio de Mesquita Neto sobre seu encontro com o chefe da Polícia Federal.

Os censores permaneceram no jornal até 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram, para só voltar em 24 de agosto de 1972. Nesse dia, correu o boato, em Brasília, de que o jornal publicaria um manifesto militar lançando a candidatura do general Ernesto Geisel, presidente da Petrobrás, para a sucessão do general Emílio Garrastazu Médici. Julio de Mesquita Neto ligou para o chefe da sucursal, Carlos Chagas, para saber o que estava acontecendo."Esse manifesto aí é coisa de vocês?", perguntou.

Não havia nada, mas o governo não se convenceu e decidiu fazer a censura prévia. No mesmo dia, os censores se instalaram no prédio da Major Quedinho. Ocuparam uma mesa ao lado dos editores, no 5º andar, mas logo tiveram de descer para a tipografia. Os jornalistas receberam os policiais com indisfarçável hostilidade. Decidiu-se então que o lugar dos censores seria ao lado das máquinas das oficinas, sem contato com a redação. Só se dirigiam ao secretário gráfico, para apontar o que estava proibido publicar.

Até a chegada dos censores, o jornal recebia da Polícia Federal telefonemas, bilhetes e comunicados com a relação dos temas vetados. Era obrigado a substituir a matéria censurada por outros textos, mas não fazia autocensura. A ordem de Julio de Mesquita Neto no Estado e de Ruy Mesquita no JT era para trabalhar como se não houvesse restrições.

"Façam as reportagens e escrevam, os censores que cortem", era essa a orientação.

Como os jornais se recusavam a substituir matérias vetadas e os censores não admitiam que se deixasse espaço em branco, recorria-se a textos aleatórios para que o leitor pudesse entender o que estava ocorrendo. Cartas inventadas na redação, tratados jurídicos e notícias sobre criação de animais e cultivo de flores apareciam com destaque nas páginas nobres do Estado, no lugar de editoriais e reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.

Quando, em maio de 1973, foi proibido publicar a notícia da demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda, Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado. "Agora é samba", dizia o anúncio, com grande impacto. Repetiu-se a dose no dia seguinte, quando foi publicada, no lugar de outra foto de Cirne Lima, uma ilustração com uma rosa branca. Legenda: "A rosa, louvada por poetas desde tempos imemoriais, continua simbolizando o amor."

Na tentativa, sempre mais criativa, de deixar claro que o jornal estava sob censura, os editores publicavam também poesias no lugar do material cortado. O primeiro poema, Y-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, saiu em destaque na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Outros poetas, como Castro Alves, Olavo Bilac, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, também colaboraram com seus versos para preencher o espaço aberto pela censura. Até textos latinos, como a Primeira Catilinária, de Cícero, foram publicados.

Nem todos os leitores entenderam o recado. Muitos deles telefonaram ou escreveram para cumprimentar o Estado pelo apoio dado à literatura e ao cultivo de flores. Um grupo de senhoras procurou o prefeito Figueiredo Ferraz para sugerir que ele apoiasse a suposta campanha do jornal para florir a cidade. Diante dessa reação, Julio de Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada, de modo que o leitor identificasse a censura.

O redator Antônio Carvalho Mendes, que escrevia uma coluna sobre cinofilia e já era responsável pela seção de falecimentos, sugeriu que se publicassem versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Aceita a sugestão, o poeta português apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da Universidade de São Paulo, foram cortados 1.136 textos no Estado, de 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura.

No Jornal da Tarde, Ruy Mesquita optou pela publicação de receitas culinárias, de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas. A reação foi parecida. Muitos leitores não percebiam a manobra e telefonavam para reclamar, pois as receitas não davam certo. Não era para menos, pois elas saíam aos pedaços, incompletas, na medida exata do espaço censurado. Quando descobriram a brincadeira, alguns leitores ligaram para perguntar o que havia sido proibido.

Os censores nem sempre tinham critérios para cortar informações, comentários e opiniões que consideravam prejudiciais ao governo. A transcrição de um discurso do professor Paulo Brossard, mais tarde senador e ministro, nas comemorações do cinqüentenário da morte de Rui Barbosa, em agosto de 1973, virou poema de Camões, porque lembrava "a luta de Rui pelos direitos humanos". Até ministros e generais ligados ao regime foram censurados.

Além de cortar textos de editorais e reportagens, a censura investia contra jornalistas. Repórteres e correspondentes do Estado sofreram pressões e foram perseguidos por causa do seu trabalho ou de suas convicções políticas. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do presidente Geisel. Em outubro de 1975, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, também foi preso e torturado no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna(DOI-Codi), na mesma semana e no mesmo local em que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura.

Oliveiros S. Ferreira, que como editor-chefe era o interlocutor do jornal com os responsáveis pela censura, teve de ir várias vezes à Polícia Federal e a unidades do Exército para explicar a publicação de temas proibidos que haviam escapado aos censores. Numa manhã em que um general mandou convocá-lo, após a divulgação de notícia sobre a invasão ou "estouro" de uma gráfica clandestina, ele saiu de casa com a certeza de que seria preso. Levou escova, pasta de dente e um livro para passar algum tempo na cadeia. Seu depoimento durou horas e ele só foi liberado à noite, depois de telefonemas de Julio de Mesquita Neto a autoridades em Brasília.

O jornal deu toda a assistência a seus funcionários. Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita assumiam a responsabilidade pelas reportagens publicadas e mandavam que, quando questionados, os jornalistas dissessem que estavam cumprindo ordens deles. Isso ocorreu, por exemplo, em dezembro de 1972, com Chagas, da sucursal de Brasília. Ele foi intimado a depor no Exército para revelar quem tinha feito uma matéria sobre denúncia de seqüestro e tortura de um médico na capital.

Chagas alegou que o material saiu de Brasília, mas que a publicação era de responsabilidade do diretor do jornal, Julio de Mesquita Neto. Convocado, por precatória, a dar explicações na 2ª Região Militar, em São Paulo, o jornalista respondeu com ironia às perguntas de um major que o interrogava.

"No jornal, o senhor ocupa que cargo?", perguntou o oficial.

"Eu sou diretor do jornal", disse o jornalista.

"Diretor responsável, não é, dr. Julio?"

"Não, responsável pelo jornal é o professor Alfredo Buzaid, ministro da Justiça. Porque o responsável pelo jornal decide o que sai e o que não. No caso, depois da censura, quem decide o que sai ou deixa de sair no Estado é o professor Alfredo Buzaid. Portanto, ele é que é o diretor responsável pelo jornal", respondeu Julio de Mesquita Neto.

O advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que o acompanhava, aconselhou-o a mudar a resposta, mas o jornalista insistiu.

"Não, e só saio daqui se ficar constando o que eu disse."

Tanto Julio de Mesquita Neto como o editor-chefe Oliveiros S. Ferreira denunciavam sistematicamente, em telegramas ao ministro da Justiça e aos líderes dos partidos do governo e da oposição no Congresso, a censura de discursos e documentos oficiais que tinham de ser substituídos por versos de Camões.

No JT, o diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que ele mandou a Alfredo Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a Polícia Federal baixou novas normas de censura à imprensa.

Dizia o texto: "Senhor ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura...Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr. ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas..."

As normas de censura que deixavam Ruy Mesquita humilhado, como ele disse ter ficado, proibiam "críticas, comentários ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira, ou problema sucessório e suas implicações", não importando de onde partissem. "As ordens acima transmitidas atingem quaisquer pessoas, inclusive as que já foram ministros de Estado ou ocuparam altas posições ou funções em quaisquer atividades públicas", dizia o comunicado da Polícia Federal. Era citada explicitamente a proibição de uma entrevista do economista Roberto Campos, ex-ministro do governo Castelo Branco.

"O grande papel na luta contra a censura foi do Estado, que assumiu toda a responsabilidade, e eu tenho orgulho de ter participado disso", afirmou o jornalista Fernando Pedreira, que na época da ditadura, sob vigência do AI-5, foi chefe da sucursal do Rio e diretor do Grupo Estado em São Paulo. "Acho que o Estado foi o único jornal diário que sofreu censura prévia. Exatamente porque o Estado não fazia autocensura, houve a censura prévia", acrescentou.

O jornal enfrentou muita dificuldade para cobrir, com a possível objetividade, episódios como a morte de Carlos Marighella, a opção pela guerrilha de Carlos Lamarca e sua morte e os seqüestros de diplomatas. Os repórteres, que só tinham acesso às versões oficiais dos órgãos de segurança, tinham de se arriscar ao recorrer a outras fontes. No caso do seqüestro do cônsul japonês Nobuo Okushi, em março de 1970, em São Paulo, os seqüestradores utilizaram o Estado como intermediário. Faziam suas exigências em cartas deixadas em caixas de correspondência e avisavam o jornal sobre sua localização.

Oliveiros S. Ferreira enfrentou um dilema. "Aviso o Exército e perco a carta ou pego a carta e o Exército fica bravo comigo?" Mandou um repórter buscar a carta e, 15 minutos depois, telefonou para um coronel. "Há uma carta em tal endereço. Mandei pegar. Vamos ver quem chega primeiro." E assim foi ao longo do dia, pois as cartas continuaram chegando até a noite. "Às vezes eu chegava primeiro, às vezes o Exército chegava." O editor-chefe tirava cópias das cartas antes de entregá-las aos militares. O Estado funcionou como um centro de distribuição, porque outros jornais e agências de notícias internacionais ficaram sabendo e pediam cópias das cartas. O Estado foi proibido de publicar as cartas, mas a imprensa do Rio publicou todas.

A lista de temas vetados pela censura incluía tudo que pudesse ser interpretado como crítica ao regime militar. Constavam da relação conflitos de terra, questões indígenas, protestos de intelectuais e pronunciamentos da Igreja Católica. Os censores proibiram até um discurso do papa Paulo VI, no qual ele se referia ao desrespeito dos direitos humanos no Brasil. Os nomes dos bispos d. Helder Câmara e d. Pedro Casaldáliga não podiam ser citados. Um comunicado da Polícia Federal, sem timbre e sem assinatura, vetou qualquer referência à peça Calabar, o Elogio da Traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra.

A censura só acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário de O Estado de S. Paulo. Era o cumprimento de um compromisso assumido por Geisel meses antes de assumir a Presidência da República, em março de 1974. Depois de sua posse, os censores continuaram nas oficinas do jornal. Apesar da promessa do ministro da Justiça, Armando Falcão, de que o governo acabaria logo com as restrições, a repressão endureceu quando começou uma epidemia de meningite. Era proibido falar na doença, que fez milhares de vítimas.

Apesar do levantamento da censura, interpretado como uma deferência de Geisel ao centenário do jornal, as dificuldades continuaram nos anos seguintes, até o fim da vigência do AI-5, em dezembro de 1978. Um período particularmente difícil foram os últimos meses de 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi preso e assassinado nas dependências do DOI-Codi. A tensão político-militar que o governo enfrentou na época se refletiu na imprensa, pois aumentaram as pressões, embora não houvesse mais versos de Camões e receitas culinárias nas páginas do Estado e do JT.

Além de protestar com as autoridades, o Estado recorreu aos tribunais contra a censura. "A chance de levar a censura à Justiça veio com a queda de Cirne Lima, quando foi proibido publicar a carta de demissão do ministro da Agricultura", disse o advogado Manuel Alceu, que entrou com a petição inicial em 15 de maio de 1973. Ele ganhou a causa em primeira instância três anos depois, mas enfrentou recursos e contestações até agosto de 1980, quando o Tribunal Federal de Recursos condenou definitivamente o governo a pagar a indenização.

"É um valor quase simbólico (a indenização, que ainda não foi paga, seria de R$ 101.223,00 em julho de 2008), levando-se em conta os danos materiais e morais sofridos pelo Estado e pelo Jornal da Tarde em 10 e 11 de maio de 1973", disse Manuel Alceu. "Acho que esse dinheiro, o valor da indenização, não tem grande importância para o jornal, pois a preocupação dos Mesquitas era outra, quando entraram com a ação", observou o juiz federal aposentado Luiz Rondon Teixeira de Magalhães, que julgou a ação procedente em março de 1976.
Instituições em frangalhos
Editorial publicado em 13 de dezembro de 68, horas antes do AI-5, que levou à apreensão[br]da edição do jornal


Das palavras ultimamente pronunciadas pelo sr. presidente da República, infere-se não ser o seu estado de espírito aquele que até há pouco sistematicamente definia a confiança que depositava em si e na sua gestão. O otimismo, de resto inconsistente, que transpirava de todas as suas atitudes, acabou por ceder lugar a uma inquietação crescente, na qual são evidentes os sinais de que admite s. exa. que as coisas venham a piorar - não porque elas se tenham em si mesmas deteriorado, mas em conseqüência dos erros praticados por s. exa. É que, com o correr do tempo e o contacto com a realidade, vai s. exa. percebendo que governar uma nação de mais de 80 milhões de habitantes e que acaba de dar, com a vitória de 64 - que, embora s. exa. a considere como obra das Forças Armadas, se deve ao próprio esforço da coletividade -, uma demonstração viva de fé democrática, é coisa muito diferente do comando de uma divisão ou de um exército.

Ao assumir as funções de presidente da República, imaginou o sr. marechal Costa e Silva que para essa dificílima missão estava perfeitamente capacitado, tanto mais que na profissão que adotara havia galgado com facilidade toda a escala hierárquica, dando sempre provas de aptidão e de descortino. Ao deixar os quartéis para bruscamente se investir das responsabilidades de supremo mandatário do Estado Brasileiro - e isso nas condições que ele e seu antecessor estabeleceram, de comum acordo e prescindindo das advertências que lhes dirigiam cotidianamente os que haviam encanecido na vida pública - fê-lo s. exa. de ânimo leve, na convicção de que, no novo terreno que pisava, bastar-lhe-ia empregar a experiência adquirida na carreira militar e devotar aquele mesmo respeito que sempre demonstrara pelos regulamentos disciplinares ao sistema legal que juntamente com o sr. marechal Castelo Branco tinha encomendado ao sr. Carlos Medeiros Silva e aos autores de seus complementos naturais, as leis de Imprensa e de Segurança Nacional.

No decorrer das primeiras etapas do seu governo tudo parecia sorrir-lhe, pois que, além de saber contar discricionariamente com a força dos regimentos, das brigadas e das divisões, dava ainda por certa a passividade da Câmara e do Senado, ambos constituídos pelos dois conglomerados que ele, como o seu antecessor, acreditava representarem a substância popular. Já nessa altura, para aqueles que através dos tempos afinaram aquela sensibilidade sem a qual ninguém será capaz de perceber os sinais precursores dos grandes terremotos, se mantinha s. exa. acima dos acontecimentos, na ilusória suposição de que tudo ia pelo melhor e que, se algumas vozes se levantavam em dissonância, não correspondiam ao sentir das camadas profundas da nacionalidade. Pouco tempo durou, porém, a euforia presidencial. Umas após as outras, começaram a manifestar-se as contradições do artificialismo institucional que pela pressão das armas foi o País obrigado a aceitar. A desordem passou a campear nos arraiais estudantis, ao mesmo tempo em que, ante o mal-estar geral, o clero revoltoso fazia sentir a sua presença até mesmo nas praças públicas. Dentro dos próprios limites do feudo aparentemente submisso à vontade do Palácio da Alvorada, não se passava dia sem que se manifestassem sintomas da insurreição latente. A Arena aderia à rebeldia geral com tamanha evidência que o próprio MDB sentiu que era chegado o momento da desforra. Resolveu então, com uma ousadia que a todos espantou, enfrentar a ditadura militar em que vivemos desde 1964 ferindo na sua suscetibilidade as Forças Armadas brasileiras.

Já agora, a ordem que julgava s. exa. o sr. presidente da República dever a Nação às instituições que ele lhe impôs revela-se uma vã aparência, pois que, ao apelar para os que considerava correligionários seguros das acutiladas da oposição contra os seus companheiros de armas, se vê s. exa. totalmente desamparado. Sob o cansaço das humilhações sofridas, aquilo que s. exa. supunha ser a maioria parlamentar, lembra-se enfim de que pela própria Constituição que passivamente aceitara lhe assistia o direito de afirmar as suas prerrogativas, como lhe assistia a autoridade moral suficiente para discutir as razões com que tanto as Classes Armadas como o Executivo Nacional pretendiam ditar-lhe a pena a aplicar a um deputado faltoso. É então que o ex-general de exército, habituado a não admitir que lhe discutam as ordens, se viu na pouco edificante posição de deixar de lado aqueles escrúpulos que o tinham levado a afirmar que jamais transgrediria um milímetro sequer as linhas da legislação que ele mesmo traçou para cometer uma série de desmandos contra a Lei e o regulamento interno do Congresso, tentando arrancar da Comissão de Justiça da Câmara, sob o protesto do seu digno presidente e o sentimento de nojo do País, a licença para processar o autor das injúrias aos militares.

Conforme o havia decidido, a sua vontade foi obedecida naquela Comissão, mas à custa da confiança que s. exa. depositava em si mesmo e da excelência das instituições vigentes. E é diante desse quadro, todo ele feito de tonalidades sombrias, que nos achamos. Até aqui as coisas pareciam suscetíveis de uma recomposição. Apesar de tudo, a passividade do Congresso Nacional, aliada à disciplina militar, poderia ainda fazer as vezes do apoio da opinião pública. Agora, porém, que são claros os sinais da desagregação irredutível da maioria parlamentar, como o comprova a estrondosa derrota sofrida ontem pelo governo, quando mais de 70 deputados da Arena votaram contra a concessão de licença para processar o deputado Marcio Moreira Alves, pergunta-se: que é que poderá resultar de um estado de coisas que tanto se assemelha ao desmantelamento total do regime que o sr. presidente da República julgava fosse o mais conveniente àquele delicadíssimo e frágil arquipélago de grupos sociais a que se referia ainda ontem, cuja integridade, é s. exa. o primeiro a reconhecê-lo, está por um fio?

Informações sobre a ditadura militar brasileira.

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