por Marcelo Auler, do Estado de S. Paulo
Dez ex-recrutas do Exército que participaram da Guerrilha do Araguaia entre 1972 e 1975 confirmaram, em depoimentos à Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a execução de guerrilheiros pelos militares, assim como a prática de tortura não apenas contra os inimigos, mas também de civis. Nos depoimentos, esses ex-soldados denunciaram ter sofrido maus-tratos e sevícias nos treinamentos recebidos.
Falaram ainda da cooptação de índios pelas Forças Armadas para localizar membros do PC do B na selva. Mas não esclareceram o maior mistério do caso: a localização dos corpos dos guerrilheiros mortos.
"Trata-se de um fato diferenciado, que é a confissão de agentes do próprio Estado", diz o presidente nacional da OAB, Cezar Britto, sobre os documentos que a Ordem encaminhou, em março passado, ao Superior Tribunal Militar (STM). "Não são depoimentos de vítimas do ato, mas de quem confessa ter praticado, ainda que sob ordens, fatos graves. É uma diferença substancial. Daí porque a OAB reivindica que se apure a veracidade das declarações que, se verdadeiras, dão certo cunho de oficialidade ao que era negado."
Os depoimentos são de alguns dos 315 ex-soldados que ingressaram com 116 ações solicitando a reintegração às Forças Armadas no quadro da reserva remunerada. Alegam ter sofrido danos físicos e morais no combate à guerrilha, na região conhecida como Bico do Papagaio, no sul do Pará e, na época, norte de Goiás (hoje Tocantins). Das ações já protocoladas na Justiça Federal de Brasília, ao menos 275 são de sócios da Associação Brasileira dos Ex-combatentes da Guerrilha do Araguaia, segundo seu presidente, Dorimar Gomes Soares.
Ex-soldado, o hoje taxista Gomes Soares licenciou-se do cargo na associação para concorrer à Câmara Municipal de Marabá (PA) pelo PT. Ele explica a dificuldade para a localização dos corpos: "É uma questão que as Forças Armadas guardam a sete chaves. Fizeram muitas ações na região, que era uma mata selvagem e hoje a mata já não existe mais. Realizaram a operação limpeza, recolhendo cadáveres e ossadas."
Alguns dos ex-recrutas apontaram a Serra das Andorinhas, nas margens do Rio Araguaia, no sul do Pará, como local para onde os militares levaram os inimigos. A conselheira da OAB Herilda Balduíno, da Comissão de Direitos Humanos que ouviu os ex-soldados em 2006, lembra que essa versão da Serra das Andorinhas já circulava antes dos depoimentos.
BURACO
"O local onde foram jogados vários guerrilheiros ainda vivos era chamado de buraco grande da Serra das Andorinhas, de difícil acesso", afirma o ex-enfermeiro Adailton Vieira Bezerra. Ele fala em "pelo menos oito pessoas, incluindo uma guerrilheira grávida", atiradas nesse buraco. Alega ter sido informado disso "pelos mateiros, entre eles Arlindo da Silva, e também por sargentos e oficiais daquela base".
No alto escalão do governo há reservas sobre as informações dos ex-soldados, como explicou um ministro ao Estado: "Nos contatos deles conosco, de vez em quando, logo transparece um certo componente de troca: se ajudarmos nas indenizações, eles ajudam a localizar. Assim fica muito difícil. Uma autoridade pública tem de manter longa distância de qualquer coisa que cheire a chantagem", comenta, pedindo para não ser identificado.
O ex-secretário de Direitos Humanos Nilmário Miranda esteve no Araguaia com um desses ex-soldados e garante: "Não deixamos nada sem verificar, mas as informações deles eram imprecisas."
A conselheira Herilda alerta ser preciso encarar os depoimentos com precaução, por serem de quem reivindica compensação por seqüelas supostamente geradas na guerrilha. Mas, admite, as declarações "devem ter algum grau de sinceridade, pois eles estavam no palco das operações e presenciaram os fatos".
ÍNDIOS
O ex-soldado Eduardo Xavier dos Santos Oliveira revelou, por exemplo, que as Forças Armadas cooptaram indígenas para ajudar a localizar os guerrilheiros. Oliveira afirma que várias vezes conduziu para os helicópteros caixas que continham munições que eram distribuídas para os índios suruís. "Eles eram os melhores mateiros e recebiam por cada pessoa capturada entre 10 mil e 14 mil cruzeiros", conta. O livro Operação Araguaia, de Taís Morais e Eumano Silva, relata que, na busca pelos cadáveres, a Comissão de Desaparecidos Políticos, em 2005, encontrou na Reserva Indígena Suruí restos de pernas de duas pessoas, nove dentes e projéteis.
O conselheiro da OAB Nélio Machado, que estudou o caso, também defende cautela com as revelações. "Os depoimentos devem ser considerados por terem sido prestados de forma solene. O assunto nunca foi devidamente apurado, quer em relação à violência que provocou, quer em relação àqueles que de alguma forma foram vítimas de uma subordinação que praticamente inviabilizou a divergência, até mesmo no plano ético. Eles se achavam praticamente em estado de coação e sofreram seqüelas que não devem ser desconsideradas. Há muita dor dos dois lados."
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