Durante a ditadura, mais de cem oficiais de outros países foram treinados em técnicas de tortura e combate à guerrilha em Manaus. Atualmente, guerreiros de selva são treinados para atuar contra guerrilha das Farc, narcotráfico, garimpo e desmatamento na região
CLAUDIO DANTAS SEQUEIRA (enviado especial a Manaus) -
Desde sua criação em 1966, o Cigs (Centro de Instrução de Guerra na Selva), em Manaus, treinou 381 oficiais estrangeiros. Desse total, pelo menos 103 se formaram entre 1966 e 1985, período em que o local serviu ao ensino de técnicas de tortura e combate à guerrilha.
A Folha obteve a lista dos militares e conseguiu reconstruir a história de alguns deles, após passagem pelo Brasil. Apesar dos registros escassos, foi possível identificar, entre os ex-alunos, assassinos condenados, cúmplices de genocídio e acusados de tortura.
Vários deles complementaram sua formação na Escola das Américas, no Panamá, conhecida por preparar repressores que atuaram nas ditaduras latino-americanas. Na sede do Cigs, os nomes de alunos e comandantes do passado são reverenciados, constando de placas de madeira que adornam a parede de um pátio interno.
Em memória de Jorge Teixeira (o Teixeirão) -que fundou o Cigs meses depois de fazer curso de guerra na selva no Panamá- foi construído um museu, com relíquias do ex-militar que fez carreira política na região. Teixeira foi governador de Rondônia e prefeito de Manaus. Morreu em 1987.
Na lista dos graduados de 1978 do Cigs está o coronel francês Didier Tauzin. Em 1994, Tauzin liderou a chamada operação Chimère, com a qual treinou secretamente oficiais hutus no combate às guerrilhas tutsis em Ruanda. O confronto étnico resultou num genocídio, com 800 mil vítimas.
O capitão chileno Rodrigo Pérez Martínez foi um dos formandos da turma de 1985. Dois anos depois de se graduar em Manaus, ele comandou no Chile a operação Albânia, que no feriado de Corpus Christi capturou e executou 12 membros da Frente Patriótica Manuel Rodríguez. Pérez, à época comandante da Unidade Antiterrorista (UAT) da Central Nacional de Informações, foi condenado a cinco anos em regime de liberdade vigiada, pelo homicídio qualificado de Patricia Angélica Queiroz Nilo.
Reféns
O general peruano reformado Leonel Cabrera Pino, foi acusado pela CVR (Comissão de Verdade e Reconciliação) do Peru de violação dos direitos humanos na época em que chefiou o Batalhão Antisubversivo 313. Ele participou do resgate dos reféns na residência da embaixada do Japão em Lima, em 1992. A ação terminou com a morte dos 14 seqüestradores, membros do Movimento Revolucionário Tupac Amaru.
Cabrera é ligado a Vladmiro Montesinos -assessor do ex-presidente Alberto Fujimori- e ao tenente-coronel golpista Ollanta Humala, derrotado nas eleições presidenciais de 2006.
O general francês Paul Aussaresses contou à Folha que foi instrutor de tortura no Cigs. Os detalhes estão no livro "Je N'ai Pas Tout Dit - Ultimes Révélations au Service de la France" (Eu não contei tudo - últimas revelações a serviço da França), lançado em Paris.
Parte da história, ele antecipou em 2004 num depoimento ao documentário "Esquadrões da Morte - A escola francesa", da jornalista Marie-Monique Morin.
No filme, o general chileno Manuel Contreras, chefe do aparelho repressor e ideólogo da Operação Condor, admitiu que enviou oficiais para treinar na Escola Nacional de Informações e no Cigs.
Em carta de 16 de setembro de 1975, ao ditador Augusto Pinochet, ele pede US$ 600 mil para custear a ida dos efetivos aos "cursos de preparação de grupos antiguerrilheiros".
"A gente usava socos, choques, tapa no ouvido"
DO ENVIADO A MANAUS
O tenente da reserva José Vargas Jimenez ganhou a admiração dos colegas de farda ao lançar o livro "Bacaba, Memórias de um Guerreiro de Selva da Guerrilha do Araguaia", em 2007, no qual narra como usou técnicas de tortura aprendidas no Cigs.
(CDS)
FOLHA - O sr. serviu na turma de 1972. Como foi o treinamento?
JOSÉ VARGAS JIMENEZ - Foi muito duro, bem próximo da realidade. Tenho consciência de que, se não tivesse passado pelo treinamento no Cigs, eu não estaria vivo.
FOLHA - Vocês aprendiam técnicas de interrogatório?
JIMENEZ - Sim. Muito das técnicas lá eram em relação aos índios que a gente prendia. Era bem brabo, mas o interrogatório psicológico é pior.
FOLHA - Pode dar um exemplo?
JIMENEZ - Eu trabalhava no DOI-Codi aqui e roubaram oito pistolas. Toda a guarnição que estava de serviço foi presa. Me mandaram interrogar. Eu, à paisana, preparei uma sala e orientei um companheiro para atuar como no filme onde tem um policial malvado e outro bonzinho.
Mandei o sargento trazer o soldado algemado e judiar dele. Aí pedi que meu companheiro retirasse as algemas e ofereci um cafezinho, um cigarrinho. Ele me delatou que as armas estavam na casa de um civil. Prendemos um senhor que tinha duas filhas lindas. Na PF, que efetuou a prisão, mandei juntar os dois e deixei eles lá por cinco minutos. Depois falei pro civil que ele era mentiroso, pois o soldado já havia me ajudado a recuperar quatro armas. Saí e chamei três agentes da PF, grandes, barbudos e com cara de mau. Na frente do homem [civil], perguntei aos agentes: "Vocês viram as duas filhinhas dele lá na favela, uma de 12 e uma de 14 anos. Vocês gostaram? Vão lá comer elas, podem ir estuprar elas". Para proteger as filhas ele entregou tudo.
FOLHA - E a tortura física?
JIMENEZ - Eles faziam na gente primeiro. Nos amarravam, faziam a gente passar fome e nem deixavam dormir. A gente usava socos em pontos vitais, choques elétricos, dava tapa no ouvido e botava o sujeito em cima de duas latinhas de leite condensado. Teve um camponês que encontramos no meio da selva -eu, Curió e meu grupo- que não queria falar onde estavam os guerrilheiros.
Pegamos ele e botamos no pau-de-arara, só que o pau-de-arara era um viveiro de formiga. Nós besuntamos ele de açúcar, colocamos sal na boca dele e deixamos ali. Em dez minutos ele falou tudo.
FOLHA - Qual a reação ao livro no meio militar?
JIMENEZ - Gostaram muito. Mandei uns livros para lá [Cigs], autografados. O major Coimbra disse que [ela] vai servir para a aula dos alunos.
Disse que o comandante [coronel Antonio Barros] me convidou para ir lá dar uma palestra e ser homenageado com o facão do guerreiro de selva [símbolo do militar da Amazônia].
Um coronel que foi meu chefe mandou pedir dez livros: mandou cinco para a Aman [Academia Militar das Agulhas Negras] e cinco para EsSA [Escola de Sargentos das Armas], para servir de orientação para os guris.
Militar reconhece aulas, mas diz que contexto era outro
DO ENVIADO A MANAUS
O comandante do Cigs (Centro de Instrução de Guerra na Selva), tenente-coronel Antonio Manoel Barros, reconheceu que a escola foi usada para ensino de técnicas de tortura durante o regime militar.
"Não era um procedimento operacional, mas em determinado contexto se sabia que a técnica poderia ser usada. A Força (o Exército) não aceitava isso como algo trivial", disse.
O treinamento incluía simulação de campos de concentração para prisioneiros. Para o coronel, tais procedimentos já não são admitidos no Cigs. "Estamos falando das décadas de 60, 70, era outro contexto."
Barros é pioneiro na inclusão de elementos da psicopedagogia no treinamento dos combatentes de selva. Ele contratou três psicólogas, que fazem o acompanhamento de todos.
O Programa de Aplicação de Pressão Psicológica , ao qual a Folha teve acesso, prevê práticas polêmicas como a privação do sono, de água e alimentos.
Embora sejam técnicas reconhecidamente usadas em sessões de tortura, o manual determina aplicação "controlada". As instruções são recomendadas pelo Departamento de Ensino e Pesquisa do Exército. Os instrutores do Cigs também são orientados no programa a evitar "contato físico" e "humilhações", inclusive xingamentos e agressões verbais.
Araguaia
"Hoje o treinamento é mais leve que naquela época", afirmou o mateiro João Barroso, que trabalha no Cigs desde 1978. Ele aprendeu com o pai a se locomover na selva e tem passado seus ensinamentos a várias gerações de militares.
Técnicas de orientação na floresta ou de aproveitamento dos recursos da fauna e flora, aprendidas com ribeirinhos ou indígenas, foram reunidas no Compêndio do Guerreiro de Selva. O livro, com todos os segredos do combate e da sobrevivência na Amazônia, é um guardado a sete chaves.
(CDS)
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