por J. R. Guzzo:
Nada como um crime 100% monstruoso, desses que elevam para um novo patamar os piores padrões que se podem atingir em matéria de crueldade e selvageria, para descobrir quanta gente fica comovida, no Brasil de hoje, com a sorte dos acusados – e horrorizada com a hipótese de que possa ocorrer alguma falha, por mais duvidosa que seja, na proteção a seus direitos.
É o que se está vendo no momento, mais uma vez, com o assassinato da menina Isabella Nardoni, em São Paulo. Para muitos dos mais renomados sábios da nossa ciência jurídica, sobretudo os que se dedicam à advocacia criminal, intelectuais de todas as variedades e até o presidente da República, o foco deixou de estar no crime que foi cometido.
O que realmente os preocupa é a "condenação antecipada" dos suspeitos, algo que, a seu ver, estaria ocorrendo no caso. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, especialmente, se mostra angustiado com a possibilidade de que inocentes tenham suas vidas "destruídas". A única vida realmente destruída, até agora, foi a de Isabella, mas isso parece ser apenas um detalhe menor na história.
O verdadeiro problema, nesse modo de ver as coisas, estaria no que os campeões do direito de defesa imaginam ser a condenação "sem julgamento" ou "sem provas" dos acusados – fruto do desejo de "vingança" e de "linchamento" que a exposição intensa do caso na imprensa faz nascer junto a uma população boçal e incapaz de entender os fundamentos do direito penal.
Ninguém, naturalmente, pode ser condenado por antecipação; mas o pai e a madrasta de Isabella (foto), denunciados como réus, não vão ser condenados por antecipação. Quem vai condená-los ou absolvê-los é a Justiça de São Paulo – não o inquérito policial, o Ministério Público, a mídia ou a opinião popular. Quem está propondo condenação sem provas ou sem julgamento?
Quem está negando algum direito de defesa aos acusados? Ninguém. Na verdade, o que acontece no mundo dos fatos é o exato oposto disso tudo. O casal esteve preso logo após o crime, em 29 de março, para não destruir provas nem sa-botar o inquérito policial, mas recorreu à Justiça e teve atendida a sua reivindicação de permanecer em liberdade enquanto a polícia fazia as investigações.
Só voltou à cadeia, na semana passada, porque sua prisão preventiva foi decretada pelo titular do 2º Tribunal do Júri. Desde o primeiro minuto teve a plena assistência de advogados, que o acompanham, instruem e protegem a cada passo, sem sofrer nenhuma restrição ao seu trabalho. Não foi tratado com nenhum tipo de violência física pelos policiais. Respondeu como quis às perguntas que lhe foram feitas; não deu resposta a nenhuma pergunta que não quis responder.
Uma soma inédita de recursos técnicos e científicos foi utilizada pela polícia na investigação do caso – algo que atende plenamente aos interesses de todo cidadão que se considera injustamente cercado de suspeitas. Ao longo de toda a investigação, em suma, não teve nenhum dos seus direitos violado. Que "linchamento" é esse?
A verdadeira dificuldade para o casal Nardoni não está na violação de seus direitos. Está, isso sim, no fato de que não surgiu até agora, após quarenta dias de investigação, feita com todos os recursos da polícia e sob o intenso holofote da imprensa, o mais remoto indício de que o crime possa ter sido praticado por alguma outra pessoa.
A verdadeira revolta popular, ao mesmo tempo, é contra a impunidade; o temor é que o pai e a madrasta de Isabella, caso culpados, fiquem livres. Trata-se de uma expectativa mais do que justificada pelos fatos. Se homicidas confessos, condenados em júri popular, estão soltos, por que não seria assim outra vez? Por que não, se está solto o médico que esquartejou uma mulher submetida a anestesia e alegou ter agido em legítima defesa?
São questões que não entram no debate. Os defensores do casal, quando de boa-fé, argumentam que nada é mais importante do que colocar a lei acima da paixão. Mas pregar de maneira automática e em qualquer circunstância, sejam lá quais forem os fatos, a favor dos direitos dos acusados não contribui para a genuína proteção dos direitos do cidadão; contribui, na prática, para dar conforto aos criminosos.
O problema da Justiça brasileira, hoje, não é a escassez de direitos de defesa; o real problema é o excesso de obstáculos para a punição e o excesso de proteção para os acusados. O Brasil é possivelmente um caso único, em todo o mundo, onde se recomenda, diante do aumento da criminalidade, a redução das penas e o aumento dos benefícios para os criminosos.
É algo que talvez faça sentido em lugares como o Pólo Norte, por exemplo, onde não há crime algum; no Brasil atual é simplesmente incompreensível. Não passa pela cabeça dos patronos dessas idéias a existência de alguma relação entre o agravamento da criminalidade e a ausência de punição efetiva para os culpados. Parecem, ao contrário, convencidos de que a saída é punir ainda menos. É muito bom, sem dúvida, para o interesse profissional dos advogados criminalistas e para o bem-estar de seus clientes. Para todos os demais é uma tragédia.
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Prisão abusiva. (Editorial da Folha)
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Caso Isabella.
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