De acordo com ex-preso, corpos foram sepultados por militares em vala comum em antiga base aérea
Lavrador conta que, após a área ter sido desmatada, não tem mais referência de onde ficava a cova coletiva; terra hoje é de uma fazenda
SERGIO TORRES
ENVIADO ESPECIAL A XAMBIOÁ (TO)
Preso pelo Exército durante a campanha de combate à guerrilha do PC do B na região do Araguaia, nos anos 70, o lavrador José Rodrigues da Silva, 70, conta ter visto militares enterrarem em uma vala comum, em Xambioá (norte do Tocantins), os corpos de 12 guerrilheiros até hoje desaparecidos.
A informação é inédita. Localizado pela Folha na cidade paraense de São Geraldo do Araguaia, separada de Xambioá pelo rio Tocantins, Baiano, como é conhecido, disse que os cadáveres foram sepultados na antiga base aérea, em buraco aberto em meio à floresta entre a margem direita do rio e a pista de pouso então usada por aviões militares.
Os enterros não foram simultâneos. Aconteceram ao longo dos 15 dias, possivelmente em 1974, em que Baiano -acusado de ser amigo e de mensageiro dos guerrilheiros- permaneceu amarrado a um tronco. A área, relembra o lavrador, era um "cocalão fechado, frio". No linguajar do Araguaia (região que abrange terras no sudeste do Pará, norte do Tocantins e sul do Maranhão), cocalão é um aglomerado de coqueiros, nascidos de modo natural na selva amazônica, então abundante.
Tempos depois do fim do que ele chama de "guerra", a floresta foi devastada -"tratorizaram", disse. A Folha esteve na segunda-feira passada no município de Xambioá, no local indicado pelo lavrador.
Não há mais mata no terreno de 300 metros de largura por cerca de 1.000 metros de comprimento, entre a esburacada pista e o Tocantins. Passados 35 anos, também não há ali vestígios da ação militar. As terras pertencem hoje a uma fazenda. A vegetação é rasteira, arbustiva. Serve como pasto.
Baiano conta que, com o desmatamento, perdeu a referência dos pontos onde ficaram a árvore em que esteve preso e a cova coletiva.
"E a derrota tá é aí, porque eu não dou conta mais. Mas se eu tivesse uma coisa recente, de menos de dois anos, eu dava conta de mostrar tudo direitinho", afirmou Baiano.
Ele reivindica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça indenização pelas quatro prisões sofridas e pela destruição a granadas dos seis alqueires de bananais que plantava em terras vizinhas às ocupadas pelos guerrilheiros. Os militares destruíam plantações para que os fugitivos não tivessem com que se alimentar.
Enterros
Baiano disse que do tronco avistava os enterros clandestinos. Algumas vezes, os militares o soltavam para observar o corpo. "Quinze dias passei amarrado no coqueiro. Só me desamarravam quando chegava um morto. No dia em que o finado Paulo Rodrigues chegou lá, eles me chamaram, me desamarraram (...): "De onde você conhece esse aqui?" Eu disse, "eu não conheço não". "Porra, tu mora aqui e não conhece ninguém?" Eu conhecia eles, conhecia eles tudinho (sic)."
Desaparecido em dezembro de 1973, Paulo Mendes Rodrigues era um dos chefes da guerrilha. Devido ao mesmo sobrenome, Baiano disse que os militares falavam que eram irmãos.
""Ah, meu amigo, você é irmão do Paulo". "De que Paulo, meu amigo? Paulo era meu pai, eu não tenho irmão de nome Paulo, não". "Você é irmão do Paulo, você vai dar conta dele". "Eu digo, tá ruim". Porque o Paulo era doutor, até analfabeto eu sou. Quem sou eu para ser irmão de um doutor", rememora Baiano um diálogo mantido à época com interrogadores.
Depois de Paulo, chegaram mais 11 corpos, segundo o relato. "Quando chegava um morto, eles iam lá e enterravam, aí deixavam. Quando chegava outro, eles faziam tipo uma camada. Sei que ficaram 12."
Dos 12, ele afirma ter reconhecido cinco: Osvaldão (Osvaldo Orlando da Costa), Paulo Rodrigues, Vítor (José Toledo de Oliveira), Zé Francisco (Francisco Manoel Chaves) e Antônio (Antônio Carlos Monteiro Teixeira).
"Guerra" deixou ferida aberta em moradores da região
DO ENVIADO A XAMBIOÁ (TO)
Passados quase 35 anos do fim da guerrilha, o assunto ainda é presente no cotidiano dos que habitam as cidades do Pará e do Tocantins que formam a região do Araguaia. O evento é tratado como "guerra", não guerrilha. As prisões são chamadas de "campos de concentração". Os militares à paisana, de "investigador" ou "detetive".
Alguns dos mais velhos, como o feirante Eduardo Rodrigues dos Santos, 83, choram ao relembrar episódios de prisão, morte, destruição de lavouras, queima de propriedades, parentes mortos ou feridos. Os mais novos, como o conselheiro tutelar Sezostrys da Costa, 23, criaram há três anos, em São Domingos (PA), a Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia, que dá assistência aos pedidos de indenização apresentados à Comissão de Anistia. Ele é neto e sobrinho de moradores perseguidos.
Nos próximos dias 25 e 26, o presidente da comissão, Paulo Abrão, vai a São Domingos. Ele presidirá as audiências em que serão tomados novos depoimentos de moradores da região, que reivindicam indenização. Alegam ter sido perseguidos pelos militares durante a guerrilha.
Até agora 240 moradores do Araguaia requereram a indenização ao governo. Nas audiências, seriam anunciados os primeiros agraciados. A comissão mudou os planos para que haja tempo de investigações complementares.
"As indenizações sairão em um, dois meses", afirmou Abrão, que em setembro esteve na região, ouvindo os moradores em depoimentos oficiais.
As alegações apresentadas são as de que militares prenderam inocentes, torturaram em busca de informações sobre o paradeiro dos guerrilheiros, queimaram plantações para que os fugitivos não tivessem o que comer, confiscaram terras.
O comerciante Edmilson Nogueira Gomes tinha 19 anos ao ser preso com o pai, Raimundo, 47. A acusação era a de que ajudavam a guerrilha. Na cidade de São Félix, em Goiás, Raimundo vendera uma loja para uns "paulistas", ainda na década de 60. Na região, os guerrilheiros, antes da ação militar, eram chamados de "paulistas", "goianos" ou "pessoal da mata".
Anos depois, Raimundo Gomes e o filho vieram morar em São Domingos, reencontrando os amigos de São Félix. Os militares logo vieram procurá-los. "Ficamos presos com mais 12. Meu pai [morto em 1988] foi muito mal tratado, apanhou muito. Teve os pés e mãos amarrados no pau-de-arara. Carregaram ele que nem porco, botaram pendurado no buraco. Eu levei muita pancada, estavam forçando para descobrir alguma coisa", disse Gomes, 54, que passou um mês nu em uma cela com 30 pessoas.
O lavrador Cícero Saraiva da Silva, 59, teve o braço direito esfaqueado ao ser preso. Contra ele, a acusação de que ajudava os guerrilheiros.
A agricultora Marcolina Gregória do Nascimento Santos, 74, conta que o marido, José Nazário, passou três meses preso em 1973. "Ele passava fome, era muito judiado. Era muito forte. Na cadeia, estava muito fininho, doente, meio lelé."
O lavrador Agenor Moraes Silva, 67, era vizinho de um dos três redutos da guerrilha. Com a entrada do Exército, ele foi preso. "Perdi tudo o que tinha, não tive direito a nada." (SERGIO TORRES)
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