A democracia não tem preço, mas os anos de ditadura militar ainda custam caro aos brasileiros. Desde o final dos anos 90, o país paga pensões e indenizações determinadas por lei aos anistiados políticos do período do governo militar. De lá para cá, a União já desembolsou pelo menos R$ 2,4 bilhões com o pagamento dos benefícios, sendo que a maior quantia, R$ 1,9 bilhão, foi paga durante a gestão do ministro Márcio Thomas Bastos. Somente nos primeiros três meses de 2008 já foram gastos R$ 122,3 milhões com os benefícios. O montante desembolsado com os anistiados desde 2001 é superior, por exemplo, aos investimentos (execução de obras e compra de equipamentos) somados realizados pelos ministérios da Educação e do Turismo em 2007, R$ 2,2 bilhões. Veja tabela com a série histórica dos pagamentos aos anistiados desde 2001.
No ano passado, a União pagou R$ 278,5 milhões apenas em pensão aos anistiados e R$ 453,4 milhões em indenizações. Os valores impressionam e a polêmica foi acesa novamente na última sexta-feira em uma sessão de julgamento da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça no Rio de Janeiro. O colegiado concedeu os benefícios a 18 jornalistas e aos cartunistas Jaguar e Ziraldo. Os dois últimos terão direito a receber pouco mais de R$ 1 milhão, R$ 1.000.253,24 e R$ 1.027.383,29, respectivamente. Além disso, terão prestação mensal permanente de quase R$ 4,4 mil.
Em seu comentário sobre o caso, Ziraldo criticou e ironizou as pessoas que reclamam dos altos valores dos benefícios. “Eu quero que morra quem está criticando porque é tudo ‘cagão’ e não botou o dedo na seringa. Enquanto eu estava xingando o Figueiredo e fazendo charge contra todo mundo, eles estavam servindo à ditadura e tomando cafezinho com o Gobery (do Couto e Silva, general, chefe da Casa-Civil da Presidência no governo Geisel)”. E completou “então, qualquer crítica que se fizer em relação ao que está acontecendo conosco eu estou me lixando”.
O regime de anistiado político baseia-se, entre outras coisas, em uma reparação econômica a pessoas que tiveram perdas devido ao regime militar. Essa reparação pode ser feita por meio de pensão vitalícia, indenização retroativa e indenização em parcela única. Somente quem consegue comprovar vínculo empregatício na época da ditadura pode receber retroativos e pensões.
Legislação
A Lei 10.559/02, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, e originada pelas Medidas Provisórias 2151/01, 2151-3/01 e 65/02 de iniciativa do então presidente Fernando Henrique, concede reparação econômica a todos os perseguidos políticos pelo Estado brasileiro que apresentarem requerimento e documentação comprobatória junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Cabe à comissão julgar cada caso e, quando aprovado, conceder pagamento de prestação mensal, permanente e continuada, a perseguidos políticos do período que se estende de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, determinada na Lei 10.559/2002.
A lei determina que o valor desse tipo de reparação seja igual à remuneração que o anistiado receberia hoje se tivesse continuado a trabalhar na atividade que exercia na época. No grupo dos beneficiados com indenizações e pensões mensais aprovadas na sessão realizada no Rio, por exemplo, estão o jornalista Sinval de Itacarambi Leão, diretor da Revista Imprensa (que receberá R$ 522,4 mil, além de pensão de R$ 4,3 mil) e Ricardo Moraes Monteiro, chefe da assessoria de imprensa do ministro da Fazendo, Guido Mantega, indenizado em R$ 590 mil, mais R$ 4,4 mil mensalmente.
As pessoas que sofreram perdas por causa da perseguição política, mas não podem provar vínculos empregatícios – caso dos profissionais liberais, por exemplo - têm direito apenas a indenizações em parcela única. Segundo a legislação, nesse caso, para cada ano de perseguição, o anistiado terá direito de receber 30 salários mínimos, sendo cada ano igual a qualquer medida de tempo inferior a 12 meses que compreenda os anos do regime militar.
R$ 4 bilhões
Segundo dados da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, existem ainda 23,1 mil processos para serem apreciados, dos 60,3 mil autuados pelo colegiado desde 2001. A comissão já analisou 37,2 mil processos durante esse período, entre 24,6 mil deferidos e 12,7 mil recusados. A meta é encerrar os trabalhos dos 23,1 mil processos restantes até o final do governo Lula. Se o ritmo continuar como está, ou seja, 66% dos processos deferidos, o valor pago com os benefícios alcançará aproximadamente R$ 4 bilhões. Clique aqui para ver o quadro com o número de processos.
Irregularidades
As críticas ao programa de anistia já geraram uma representação elaborada pelo procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Furtado. Ele entrou, ainda em março de 2005, com uma representação no TCU questionando o cálculo das indenizações. Na ocasião, o ministro Augusto Sherman Cavalcanti relatou um processo sobre o caso. Nele, constatou indícios de irregularidades nas concessões das indenizações e das pensões.
Entre os problemas encontrados e citados no relatório elaborado em 2007, estavam a concessão de reparação econômica sem caracterização da condição do anistiado, a definição do valor da prestação mensal em desacordo com a Lei 10.559/2002, inconformidades na ordem de tramitação dos processos e a desconsideração da situação econômica atual da pessoa (em relação ao valor definido na prestação mensal).
Entre as medidas adotadas, o TCU recomendou à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça que procedesse da seguinte forma: “quando da definição do valor da reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada, bem como de seus efeitos retroativos, proceda ao abatimento dos valores que o requerente eventualmente houver percebido em razão do exercício de atividade remunerada incompatível com a que fundamentou a concessão da indenização”.
Para Furtado, há um problema na interpretação da lei da anistia que acaba privilegiando algumas pessoas de boa colocação profissional com pensões e indenizações retroativas milionárias. “A legislação prevê apenas ressarcir quem perdeu emprego por causa da perseguição militar. Considera que a pessoa ficou desamparada desde que perdeu seu emprego até os dias de hoje. Não leva em conta a possibilidade dela ter arrumado uma nova colocação um mês depois da demissão e que hoje possa ter um bom emprego. Por isso temos atualmente casos de pessoas com uma boa colocação profissional recebendo pensões de R$ 19 mil. Acho justo que se pague, porém, somente o que foi objeto de perda realmente”, acredita.
Furtado ainda coloca em questão o critério utilizado para o ressarcimento dos anistiados. “A lei da anistia não prevê o ressarcimento de quem tenha sofrido tortura ou tenha sido preso e humilhado. Não há a possibilidade de indenização por danos morais”, observa o procurador.
A assessoria da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça informa que o relatório do TCU é especificamente sobre dois casos. Um deles envolve uma anistiada chamada Maria Augusta Carneiro Ribeiro, que já teve sua pensão reduzida de R$ 9,4 mil para R$ 3,6 mil. O outro caso envolve 498 ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB). A assessoria afirma que, devido à emissão da portaria 1104, que determinava que ex-praças da Aeronáutica permanecessem no máximo oito anos na FAB, alguns deles que entraram com o processo depois da emissão da portaria não tiveram êxito em seus processos. A interpretação da comissão é que apenas os cabos que entraram com o pedido do benefício antes da emissão da portaria têm direito à indenização. Segundo a assessoria, as demais providências já estão sendo tomadas e as determinações do TCU estão sendo cumpridas.
Gabeira
O deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), que participou de movimentos contra o governo militar na época da ditadura e que nunca entrou com pedido de indenização na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, acredita que é muito difícil afirmar quem realmente merece receber os benefícios. “É muito antipático dizer que esse merece e aquele não”, acredita. Segundo ele, as indenizações deveriam ser restritas a casos graves, que não foram reparados.
A assessoria da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça reconhece que, em alguns casos, o valor pago aos anistiados é elevado. No entanto, lembra que a média do subsídio mensal e permanente concedida aos beneficiados é de cerca de R$ 780,00. A assessoria também acredita que mais importante do que os valores pagos, “que não apagam os erros cometidos no passado”, é o reconhecimento do Estado de que errou.
Segundo a assessoria, o critério para a análise dos casos é baseado na verificação do passado da pessoa: se ela foi perseguida politicamente e, em conseqüência disso, perdeu o emprego. “A lei determina que os valores das indenizações sejam concedidos por meio do cálculo do tempo em que a pessoa foi lesada. O ministério cumpre o que está na lei”, informa a assessoria. De acordo com a comissão, a concessão de valores milionários, aprovados apenas em alguns casos, são resultado do grande período acumulado em que a pessoa ficou fora de seu emprego por causa da ditadura militar.
Leandro Kleber, do
Contas Abertas.
>
Informações sobre a ditadura militar brasileira.
Comentários
Postar um comentário